Por que andamos tão zangados?

Os especialistas concordam: não é que a nova geração seja mais violenta – mas é cada vez mais importante “conectarmo-nos a nós próprios”.

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LUSA/ANTÓNIO PEDRO SANTOS

No final de Janeiro, em Pombal, um revisor de um comboio Intercidades foi agredido depois de fechar uma janela que um passageiro insistia em ter aberta. Aquele foi o segundo ataque em duas semanas, depois de, no início do ano, receber tratamento hospitalar devido a uma investida de um passageiro que viajava sem bilhete. Dos carris para a sala de operações, uma médica foi agredida por uma utente no hospital de S. Bernardo, em Setúbal, nos últimos dias de 2019, um dos muitos casos de agressão a profissionais de saúde, que dispararam no ano passado. Isto sem falar do escalar de violência em escolas ou estádios de futebol.

O que se passa, os portugueses estão mais agressivos? “O aumento de visibilidade de um fenómeno não significa que tenha crescido”, começa por salvaguardar Margarida Gaspar de Matos, coordenadora nacional do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), que acompanha os comportamentos dos jovens entre os 11 e os 15 anos, analisando os efeitos sobre a saúde dos “ambientes sociais” nos quais os inquiridos se inserem. Para Gaspar de Matos, os casos de violência começam a ser mais noticiados a partir do momento em que esta “deixa de ser admissível”. As novas gerações têm “tolerância zero” em relação à violência, o que, para a professora na Universidade de Lisboa, constitui um significativo “avanço civilizacional”.

Desde 2002 — o estudo HBSC é feito de quatro em quatro anos —, que os índices de violência recolhidos, desde a verbal à física, têm registado uma descida. “Antes, os pais batiam nos filhos e nas mulheres, os professores batiam nos alunos, resolvia-se tudo à pancada. Não queremos mais compactuar com isso”, frisa. A rede de investigação assinala que “os comportamentos estabelecidos durante a adolescência podem continuar na idade adulta”, influenciando o bem-estar mental ou contribuindo para alterações na dieta e nos níveis de actividade física, por exemplo.

Helena Marujo, coordenadora da cátedra da Unesco em Educação para a Paz Global Sustentável, tende a concordar: Se, no passado, as práticas violentas “ficavam no espaço privado”, uma “maior mediatização da violência” contribui hoje para o crescimento da “capacidade de entendermos o que não é adequado”. No entanto, reconhece que actualmente existe uma maior “incapacidade em nos mantermos serenos”. Esta deve-se ao “crescendo de pressão social” a que as pessoas estão a ser expostas. Criar uma “conciliação positiva” entre a família e o trabalho torna-se cada vez mais difícil e desenvolver uma “relação saudável com as emoções” é igualmente complicado. Está a aumentar uma sensação de “insegurança quanto ao sucesso”, possivelmente porque, “em vez de estimularmos o conceito de comunidade, temos estimulado o de individualidade e solidão”, acredita a professora universitária.

Dificuldade em gerir o que não é prazer

O crescimento da “era dos ecrãs” pode ajudar a explicar a forma agressiva como as pessoas gerem as situações, avalia Rosário Carmona e Costa, psicoterapeuta no Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (Cadin), em Cascais. Nas redes sociais somos “permanentemente estimulados”, estamos constantemente à procura da “recompensa imediata”, é uma corrida pela “gratificação instantânea”, justifica a especialista nas áreas de cyberbullying e inteligência emocional. Esta pode levar a perturbações no “desenvolvimento do autocontrolo”. Ao não aprendermos o “adiamento da recompensa”, desce a “tolerância à frustração”.

“Estar online é um prazer”, e, em contrapartida, quando nos confrontamos com a vida real “há dificuldade em gerir situações que não são prazerosas”, confirma Ivone Patrão, investigadora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). “Não temos prazer todos os dias, não ‘passamos de nível’ no quotidiano”, ilustra a especialista. 

O online, onde “descarregamos raiva e ofendemos com facilidade”, “retira o medo da avaliação social”, analisa Alexandra Carvalheira dos Santos, professora e investigadora no ISPA. É por isso que pode ser palco privilegiado para a violência: “Estamos menos expostos, por isso dizemos o que queremos.” Trata-se da “sensação de impunidade derivada do anonimato”, explica Helena Marujo. Se acreditamos que “não tem consequências”, temos luz verde para “humilhar”, acrescenta.

Este não é, segundo Rosário Carmona e Costa, o único dos problemas. Nas redes sociais, somos perseguidos por uma sensação de “insatisfação constante” porque estamos sempre perante “vidas que parecem melhores do que as nossas”. “Sentimos que estamos atrás e que precisamos de fazer algo para mudar, a toda a hora.” É por isso que Helena Marujo destaca a necessidade de, tanto nas redes como fora delas, “estimularmos processos opostos”, desde a “comunicação não-violenta” à promoção de “pacificação e coesão social”.

A culpa é dos media?

Para Helena Marujo, os meios de comunicação social também têm responsabilidades. “O jornalismo deixa-nos com menos confiança no futuro” sempre que ajuda a criar “uma visão do mundo desmotivadora”, afirma. A psicóloga reconhece nos media “uma capacidade de influência extraordinária”, pelo que reforça a necessidade de os mesmos valorizarem “visões construtivas” mais do que “ódio e violência”. “Os meios de comunicação não espelham a realidade; eles criam a realidade. O jornalismo pela paz é cada vez mais importante.”

Ao “enquadrarem os problemas de certos modos e não de outros” e ao “favorecerem determinadas soluções”, os órgãos de comunicação são “verdadeiramente decisivos na vida quotidiana das pessoas”, salienta Rita Basílio de Simões, doutorada em Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra. A “responsabilidade jornalística é maior perante histórias de violência” porque estas “naturalizam ideias para pensar as causas e soluções dessa violência, assim como valores para avaliar a conduta das pessoas retratadas”.

“Há um debate antigo e inconclusivo sobre os efeitos das notícias nos comportamentos dos indivíduos”, continua a professora. A co-autora de Justiça e comunicação: o diálogo (im)possível acredita que os cuidados relacionados com a programação televisiva são sempre importantes, “de forma a evitar o risco de determinados conteúdos influenciarem negativamente crianças e jovens, gerando um efeito de imitação” mas, lembra, os meios de comunicação têm o poder de “sinalizarem os problemas que merecem ser de ordem pública”.

A visualização de conteúdos, acrescenta Ivone Patrão, “activa memórias”. “Há uma sensação de identificação associada, uma espécie de ‘isto já me aconteceu’. Os meios de comunicação divulgam as respostas a casos de violência, mostram como a sociedade reage aos mesmos e lembra que não caíram no esquecimento. Alguém que tenha sido alvo de um episódio violento sente que houve denúncia e apoio”, conclui.

Se, sublinha Rosário Carmona e Costa, a “nova geração não é mais violenta” – embora, por estarmos “constantemente expostos a conteúdo violento”, este por vezes tenha deser “muito violento para impressionar” –, Margarida Gaspar de Matos refere que “a violência contra nós próprios” nunca esteve tão presente. “Andamos stressados com a gestão do nosso tempo. As horas livres tornaram-se quase nulas, estamos sempre sob pressão, acabaram-se os dias em que não tínhamos nada para fazer.”

A doutorada em Educação Especial e Reabilitação diz que faz falta “um espaço de serenidade”. Alexandra Carvalheira dos Santos, que é professora de mindfulness há dez anos, deixa a receita: “Precisamos de aprender a abrandar”. Na correria do dia-a-dia, “as pessoas não sabem quais são as suas necessidades”. Por isso, “satisfazemos essas necessidades através de coisas. Roupa, comida, sexo, comprimidos.”

Esta “ilusão de preenchimento e realização” aumenta a nossa irritabilidade, torna-nos impacientes. Tudo isto pode ser um gatilho para a violência. Se não exteriorizada, pode ser auto-infligida. Daí que Alexandra Carvalheira dos Santos deixe o repto: “É importante conectarmo-nos a nós próprios.”

Texto editado por Bárbara Wong

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