Por que têm os nossos pais de envelhecer?

Por mais injusto e absurdo que isso nos pareça, esses super-heróis sem capa, que são os nossos pais, também envelhecem e nós temos de ser capazes de nos preparar para isso.

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Paulo Pimenta

Enquanto esperava pelo atendimento num serviço de urgência ouvi a seguinte conversa, entre um casal: “Temos 83 anos e temos de reconhecer que há coisas que já não podemos fazer. É assim. É simples!”

E estas palavras recordaram-me que, há cerca de um ano, tive ocasião de estudar o modo como os filhos lidam com o envelhecimento dos seus pais. E, nas várias conversas que tive e nas entrevistas que realizei, pude constatar que este continua a ser uma espécie de grande tabu familiar, o tal elefante, bem no meio da sala, que todos fingem não ver.

E sabemos que se trata de uma inevitabilidade, assim como sabemos que será mais facilmente enfrentado se for antecipado e planeado, mas, no entanto, não o fazemos e, mais do que não o fazermos, evitamo-lo, contornamos o assunto, afugentamos a preocupação com um, aparentemente mais fácil, “mas que disparate, estarmos a falar disso agora!”.

Que disparate reconhecermos que os esquecimentos e as confusões se tornam mais frequentes. Que as batidas com o carro (afinal, uns risquinhos sem qualquer importância!) são cada vez mais comuns. Que as coisas, lá em casa, parecem ganhar vida e sumir-se, teimosas, para os sítios mais improváveis.

Que disparate darmo-nos conta de que aqueles braços que ainda ontem (e foi ontem, não foi?) nos empurravam o baloiço até quase tocarmos o céu, hoje já não conseguem carregar um ridículo saquinho de supermercado.

Que aquelas pernas que se apressaram para nos recolher à saída da escola, hoje se baralham nos seus próprios passos.

Ou que as mãos, que aplicaram o primeiro curativo no nosso joelho esfolado e secaram as lágrimas do nosso primeiro desgosto de amor, se transformaram, agora, nuns dedos nodosos e trementes.

Ver envelhecer os nossos pais é dizer, em definitivo, adeus à nossa infância e é, ao mesmo tempo, olhar para o espelho das manhãs e ver, lá no fundo, as rugas que hão-de ser as nossas e os olhos turvos com que iremos enfrentar o mundo.

E não queremos! Não queremos porque dói. E é a dor do presente e a dor do futuro, misturando-se (deles e nossos, este presente e esse futuro).

Não queremos e calamos e, calando-nos, obrigamos a calar.

E, por calarmos, ficamos perdidos e desorientados nesse dia em que as pernas se baralham, para sempre, numa queda grave, ou em que os esquecimentos se convertem na incapacidade de reconhecer os rostos e os locais de toda a vida (e, sobretudo, na incapacidade de reconhecer o nosso próprio rosto).

Perdidos emocionalmente e perdidos na ausência das respostas que, como sabemos, são insuficientes e são caras e são inadequadas e são até, por vezes, degradantes.

Por isso, cuidar é também, ou sobretudo, cuidar antes de os cuidados serem precisos.

É procurar soluções institucionais várias, que possam ser adequadas futuramente, mas também preparar e mobilizar uma rede de apoio familiar e de vizinhança. É adaptar as casas, as rotinas e os próprios objectos do quotidiano.

É, numa palavra, prevenir (não o envelhecimento, mas o modo como lidamos com ele e com algumas das possíveis necessidades e efeitos que se lhe associam).

E é escutar. Com alma e desassombradamente, sem as fugas para a frente do “depois logo se !"; sem os enganos do “estás agora velho, que disparate!"; sem as promessas, que não sabemos se cumpriremos, do “é claro que nunca irás para um lar!”.

E esta espécie de cuidar antes de cuidar permitirá aliviar alguma da pressão e da sobrecarga futuras, privilegiando a dimensão emocional, que constitui a essência própria do cuidado, salvaguardadas que estão aquelas dimensões estritamente funcionais.

É que, por mais injusto e absurdo que isso nos pareça, esses super-heróis sem capa, que são os nossos pais, também envelhecem e nós temos de ser capazes de nos preparar para isso.

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