A Sibéria de Ferrara e Dafoe avassalou Berlim (e o gato de Hong Sang-soo também!)

Com Siberia e The Woman who Ran, a 70.ª Berlinale recebe dois dos seus mais fortes candidatos ao Urso de Ouro – mas convirá não esquecer a surpresa Never Rarely Sometimes Always.

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Abel Ferrara em Berlim com Dounia Sichov e Willem Dafoe, actores em Siberia RONALD WITTEK/EPA

Não se sabia bem o que esperar de Sibéria, sexta colaboração entre Abel Ferrara e Willem Dafoe, apenas poucos meses depois de Tommaso. Na verdade, na verdade, visto o filme, não sabemos também muito bem o que dizer – às tantas, na conferência de imprensa, uma jornalista mexicana perguntava se a intenção de Ferrara teria sido um filme que cada espectador fizesse na sua própria cabeça durante a projecção. E Ferrara mandou logo pará-la, “alto aí, não faço ideia que pergunta isso daria mas como resposta é fabulosa”.

Porque, de facto, Siberia (Competição) é como ligar um cabo HDMI directamente à cabeça de Ferrara para ver o que lá está. Poderá fazer sentido para ele, com o velho cúmplice Dafoe, amigo de casa, a entregar-se com abandono e modéstia, a servir de alter ego fílmico, de tradutor, de âncora e farol para o espectador se poder agarrar a algo neste filme. Mas é um filme-terapia, um filme-catarse, que se perde progressivamente num labirinto de referências, memórias, arrependimentos, seguindo uma lógica puramente onírica.

Místico e sem cedências 

O título, disse Ferrara, veio-lhe do significado que os americanos dão ao conceito de Sibéria – exílio e solidão, temas que, juntamente com a religião, a culpa, o remorso, literalmente sustentam o filme. Sibéria é visionário – no sentido de ser um filme de “visões”, místico – mas é também um filme sem cedências nem compromissos de espécie nenhuma, e, como sempre em Ferrara, objecto profundamente divisivo. 

As próprias críticas em Berlim atravessam todo o espectro de reacções (a obra-prima de uns é o desastre de outros; e Ferrara também nunca foi exactamente unânime), mas a verdade é que Siberia não se resolve numa projecção e chega quase a ser inútil tentar emitir uma opinião a quente sobre um filme que fica a ruminar na cabeça do espectador. E, quase como quem não quer a coisa, Ferrara cria o acontecimento numa competição que, entre First Cow, Todos os Mortos e Undine, já tinha uma mão cheia de belos filmes.

Entre os quais será, agora, inevitável colocar o novo do coreano Hong Sangsoo, The Woman who Ran - “a mulher que fugiu”. Quem é a mulher que fugiu, perguntamos nós? Alguém na conferência de imprensa fez a mesma pergunta e o homem respondeu-lhe “ainda não decidi”. Porque, na verdade, todas as mulheres de The Woman Who Ran – a começar por Woojin, interpretada pela “musa” Kim Minhee e cujas visitas a velhas amigas constroem a estrutura da história – se instalaram fora do centro de Seul e reconstruiram as suas vidas após divórcios, casamentos, relações que acabaram.

O cinema do coreano, recentemente alvo de uma integral na Cinemateca Portuguesa, funciona muitas vezes como “variações” sobre um tema, de outra maneira The Woman Who Ran não seria um filme do seu autor. Mas há, de facto, algo de novo a borbulhar em Hong, que já em Grass e Hotel by the River, os seus anteriores filmes, abrira espaço para a melancolia e se abandonara menos aos prazeres do soju (preferindo-lhes o chá) e aos jogos amorosos. Este é um filme onde os homens não existem ou são inúteis (onde até um gato se sai melhor do que eles, levando a uma gargalhada e aplauso geral da plateia), onde as mulheres recuperam do mal que eles lhes fizeram e se perguntam o que fazer agora. 

Não há grandes bebedeiras, substituídas por muita comida, mas as perguntas que Hong faz neste filme, sobre uma mulher cuja vida nunca veremos mas que aproveita a ausência do marido para ver como as amigas que saíram de Seul vivem, são mais profundas e delicadas, envolvidas numa suave atmosfera de melancolia. Como se o sul-coreano estivesse, como um bom vinho, a crescer com a idade.

Um thriller moral que nos abala

Tanto Siberia como The Woman Who Ran estão à frente das apostas para o Urso de Ouro, mas convirá não esquecer que há sempre cavalos a correr por fora e um deles é absolutamente notável. Never Rarely Sometimes Always, terceiro filme da americana Eliza Hittman, vinha de Sundance com altíssimos elogios. Por uma vez, merecidíssimos: simultaneamente retrato sóbrio e económico da vida quotidiana na América de Trump e olhar brutalmente documental para o debate sobre o aborto, Never Rarely Sometimes Always não julga. Limita-se a olhar para Autumn, uma adolescente da Pensilvânia rural para quem a gravidez não é uma opção, e que viaja a Nova Iorque com a prima para aí conseguir o aborto que as leis do seu estado não lhe permitem.

Ao firmar tudo no quotidiano de smalltown de Autumn, espécie de prisão a que foi condenada por ser uma adolescente de classe trabalhadora, Hittman empresta uma fortíssima dimensão sociopolítica a esta história pessoal. E a interpretação toda em contenção, quase violenta, de Sidney Flanigan como Autumn, filmada pela realizadora em permanente luta silenciosa com o mundo, testemunho da violência feita diariamente sobre as mulheres, transforma Never Rarely Sometimes Always num thriller moral que nos arrasta, nos abala, nos toca. Eliza Hittman mexeu connosco e o seu filme é mais uma descoberta numa Berlinale 2020 de altíssimo calibre.

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