Corpo emigrado, mas com a alma no sítio

Inglaterra tem tons de primeiro amor e eu, como qualquer pessoa tola na paixão cativante, aceitei a primeira dança. Vários zeros para a licenciatura, outros tantos para o mestrado e nem refiro os dos descontos. Atirei-me de cabeça nesta relação onde só uma amou.

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LUSA/ANDY RAIN

Fiz lar — não casa, lar — num país que me fingiu abraçar: era ratoeira. Inglaterra foi quase um primeiro amor, o encanto e o conforto, a segurança e os planos que se fazem no plural. Este primeiro amor teve também a particularidade de ser infantil, de me afastar de forma quase rancorosa, de terminar a relação por mensagem, um amor quase namoro que nunca seria para sempre. Disse-me em vários tons e formatos que até gostava de mim, que até me tolerava, que a culpa nem era minha — era dos outros. Residência permanente, como quem dá um biscoito, como quem finge que se lembra.

Depois escreve-me para me dizer que agora posso permanecer, posso ter vida aqui, mas que a Marta que aqui chegou há cinco anos não teria sido suficiente. Que a minha família não é suficiente — é do inglês, das qualificações, das politiquices, dos cifrões —, é de já não sermos pessoas e de não me quererem conhecer, da individualidade das pessoas não ser relevante, interessante ou cativante. São desculpas dos que estão no topo e o medo dos que estão a olhar para cima. É da estratégia pouco humana, pouco bonita.

Inglaterra tem tons de primeiro amor e eu, como qualquer pessoa tola na paixão cativante, aceitei a primeira dança. Vários zeros para a licenciatura, outros tantos para o mestrado e nem refiro os dos descontos. Atirei-me de cabeça nesta relação onde só uma amou. Claro está que a imensidão de um país não é responsável por uma parte — mas parte o coração. Quando se investe numa vida tão longe do que conhecemos, esperamos amor incondicional, mas este veio com cláusulas e condições.

Estas cláusulas que existem nos contratos da individualidade são constantes tropeções. Este amor agressivo passou-me a mão nas costas porque não sou do Leste, porque não sou negra, porque não uso hijab, porque até sei a língua, porque sou formada e até lhe dou algum jeito para fingir ser meigo. Todas estas cláusulas são leis do inferno onde nem Satanás impera — porque império só aquele que os homens carregam ao peito, chamam-lhe pátria, disfarçando a liberdade, aplaudindo a violência.

Recuso-me a não ser vista, recuso-me a ser apenas tolerada. Podem ler nas minhas palavras a amargura de tenra idade, a revolta de quem deixou as palas no berço e a voz de quem não se contenta com a ideia fantasiada, romantizada, maquilhada e arquitectada desta democracia violenta e em rumo ao passado. No país em que nasci, esquecem Salazar e votam Ventura; no país onde fiz casa, já se mistura supremacia branca e com “h” pequeno no pequeno-almoço inglês.

Agora vivo onde não amo e a minha casa só continua a ser lar por sair sempre vitoriosa a criatividade, a bagagem e a particularidade de cada uma que aqui vive. Fechamos as cortinas e criamos um universo escondido. Não me quero demorar. A rasteira está também aí, daquilo que queremos ao que conseguimos, surgem números, pessoas que são robots e quase não-opções que cabem na aplicação da conta bancária. Não me quero demorar e o meu querer também tem cláusulas e condições, como se nem em mim eu mandasse. Não me vou demorar, nem que a demora seja daqui a dois ou três anos — ou dez.

Enquanto não se der, não me conformarei, serei eu, nua e crua, resiliente deste amor tirano que diz que o mundo pertence aos homens (inserir a especificidade até desses homens a quem dizem pertencer). Esta Terra é minha e dos que não falam inglês, dos que não são brancos, de quem usa hijab e de quem vem do Leste. Porque somos, assim, simples: somos. Não temam sermos dominados por máquinas quando rezam ao Deus que não serve a todos, vejam-se antes ao espelho e repitam que o mundo só é nosso enquanto cada um de nós tiver algo seu para oferecer. Não queiram rebanhos, queiram pastos sem margens. Quando a natureza fechar fronteiras, só será feliz quem souber fazer da paisagem poesia, do vento, canções e dos outros: amor.

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