Portugal na linha da frente dos cabos submarinos que detectam sismos

Grupo de trabalho entregou ao Governo recomendações para a substituição dos cabos de comunicações submarinos entre Portugal continental, os Açores e a Madeira. O projecto prevê que a infra-estrutura tenha a capacidade de detectar sismos e tsunamis.

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O novo anel em cabo submarino que liga Lisboa, Ponta Delgada e o Funchal (a vermelho). As ilhas dos Açores continuam interligadas pela infra-estrutura já existente NASA/Joshua Stevens/D. Sandwell et al./Mike Carlowicz/PÚBLICO

Mais de 500 anos depois dos Descobrimentos, Portugal volta a ter “um papel pioneiro e de liderança no Atlântico” – q​uem o diz é Yasser Omar, do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa e investigador do Instituto de Telecomunicações (IT), que faz parte do projecto de investigação para o lançamento de novos cabos de comunicações submarinos entre Portugal continental, Açores e Madeira. Mas há uma novidade: além das telecomunicações, os novos cabos permitirão a investigação científica.

É sabido que o anel Continente-Açores-Madeira (CAM) em cabo submarino terá de ser substituído em breve, uma vez que a sua vida útil terminará entre 2024 e 2025. Mas foi ainda antes de tomarem conhecimento deste facto que investigadores do IT, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e do Instituto Dom Luiz (IDL) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa começaram a desenvolver, há quase dois anos, um projecto conjunto de investigação (chamado Listening to the Earth under the Atlantic) sobre os cabos de comunicações submarinos com os olhos postos no ambiente, nas alterações climáticas, na oceanografia, geofísica e sismologia. Meses depois, os investigadores foram contactados pela Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) e desafiados a averiguar e estudar os requisitos técnicos necessários para que este equipamento pudesse ter novas funcionalidades, nomeadamente ao nível da detecção de actividade sísmica.

“São ideias que podem ser muito revolucionárias do ponto de vista científico, mas com grandes implicações também ao nível tecnológico e societal”, especialmente em termos de monitorização e previsão de risco sísmico e de tsunamis, começa por explicar Yasser Omar.

Um ensejo que apenas acontece a cada 25 ou 30 anos, quando as infra-estruturas de comunicações submarinas são substituídas. “É uma oportunidade única no tempo e no espaço”: “No tempo porque é agora que se vai instalar o novo anel CAM, que deverá estar a funcionar por volta de 2024; e no espaço porque praticamente toda esta infra-estrutura fica na zona económica exclusiva portuguesa” — não interferindo com países terceiros, destaca Yasser Omar.

O anel é constituído por três cabos de fibra óptica, com um comprimento total de aproximadamente 3500 quilómetros (1000 quilómetros entre o continente e a Madeira, outros 1000 entre a Madeira e os Açores e 1500 entre os Açores e o continente) e um pouco menos de dois centímetros de diâmetro cada um. Este equipamento ficará assente no fundo do mar, por vezes a mais de 5000 metros de profundidade e, estimam os especialistas, implicará um investimento de 119 milhões de euros.

Melhor tráfego de Internet

A substituição do equipamento actual, cujo fim de vida se aproxima, é “fundamental”. “Está fora de questão os Açores e a Madeira não terem ligações em cabo submarino”, refere José Barros, director de relações exteriores da Anacom. “O satélite, que poderia ser uma alternativa, não disponibiliza a mesma largura de banda do que o cabo submarino. Enquanto no continente quando se recebe um email e tem um attachment ele abre rapidamente, lá [nas regiões autónomas] esperaríamos um minuto ou dois até abrir o ficheiro que viesse como anexo”, acrescenta.

Este sistema permitirá ainda promover a conectividade internacional do país, conferindo a Portugal “mais independência e possibilidade de escolha, com melhor qualidade e a melhores preços” ao nível das comunicações, refere José Barros. Além disso, a possível utilização do novo Anel CAM como Plataforma Atlântica CAM para amarração de cabos submarinos internacionais possibilitaria a instalação de serviços de armazenamento de dados (data centers e serviços cloud) e de interconexão com novos pontos de presença de operadores (PoP), sendo também uma forma de tirar partido da “excelente” posição geográfica de Portugal, explica o director da Anacom. Mas não só.

Do telégrafo à detecção sísmica

Foi em 1855 que foi inaugurada a rede de telegrafia eléctrica em Portugal, altura em que as grandes empresas internacionais de cabos submarinos começaram a fazer chegar várias propostas de amarração de cabos em território português. Um ano depois foram lançados os primeiros três cabos telegráficos subfluviais (no rio Tejo, na ria de Samora e no vau de Alcochete), mas foi só em 1870 que foi lançado o primeiro cabo telegráfico submarino que ligava Portugal a Inglaterra e Gibraltar. Em 1893, foi criado um cabo telegráfico submarino entre o continente e os Açores. Seguiram-se, no século seguinte, os cabos submarinos coaxiais (permitindo vários circuitos telefónicos) e, em 1988, entrou em funcionamento o primeiro cabo submarino intercontinental em fibra óptica que ligava a Europa aos Estados Unidos (um sistema que, quatro anos depois, chegou a Portugal).

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Amarração de um cabo submarino da Deutsche Atlantische Telegraphengesellschaft (DAT) na Horta, Faial, Açores (1904) Acervo iconográfico à guarda da Fundação Portuguesa das Comunicações

Agora, poderá ser dado um outro passo. Isto, porque os novos cabos submarinos em fibra óptica poderão vir a recolher informação do fundo do mar (como temperatura e salinidade) e a detectar vibrações sísmicas, prevendo-se ainda a instalação de “sensores de pressão para medir a coluna de água, podendo a partir de aí saber-se o período da onda e concluir-se se é um tsunami ou uma vaga normal”, diz José Barros.

Segundo Fernando Carrilho, geofísico do IPMA, este é “um projecto absolutamente inovador”. “É praticamente a primeira oportunidade de transformar um sistema de comunicações puro e aproveitá-lo para outras aplicações de natureza científica e também ir ao encontro da prestação de serviços públicos, como sejam os alertas sísmicos e de tsunamis”, sublinha.

Uns segundos para parar um comboio

Tendo em conta que a velocidade de propagação da comunicação na fibra óptica submarina é “praticamente instantânea”, será possível termos “no continente uns segundos de avanço [no caso de um sismo] para que a informação possa ser processada”, diz José Barros. Tais dados poderão depois ser transmitidos à protecção civil que emitirá os alertas de sismo ou tsunami à população.

No fundo, tratar-se-ia de recolher a informação antes de a onda sísmica chegar, proporcionando apenas uns segundos de avanço no caso de um tremor de terra, mas cerca de 30 minutos no caso de um tsunami“Às vezes alguns segundos dão para parar uma cirurgia ou um comboio”, comenta Yasser Omar.

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Cabo submarino de fibra óptica Acervo iconográfico à guarda da Fundação Portuguesa das Comunicações

Actualmente, Portugal tem já um sistema de alerta de tsunami, que se enquadra numa rede europeia. “Mas uma das grandes limitações que este sistema tem é o facto de não existir forma de observarmos directamente o que se passa no oceano profundo”, nota o geofísico do IPMA. Caso haja um fenómeno sísmico de grande dimensão, é já possível “com base em cenários e conhecimento acumulado sobre aquela zona determinar o potencial para que um sismo gere ou não um tsunami, mas não é possível confirmar, de facto, se o tsunami foi gerado. Mas com a utilização de “sensores em oceano profundo seria possível antecipar significativamente os tempos de confirmação dos tsunamis”.

Alertar os países vizinhos

Tal informação poderá ser também transmitida, por exemplo, a Espanha e Marrocos que, estando mais longe do epicentro, terão mais tempo de reacção. “No nosso laboratório estamos a desenvolver equipamentos para fazer o registo sísmico no fundo do oceano e, neste caso particular, a razão dessas observações é que para Portugal continental e também para os países vizinhos – Espanha e Marrocos que têm costas no Atlântico – as principais fontes sísmicas que podem gerar sismos e tsunamis destruidores têm a sua origem sobre o mar”, explica Luís Matias, sismólogo do IDL.

“Em termos da vigilância e monitorização sísmica, os novos cabos são uma oportunidade única, porque só vamos voltar a tê-la daqui a talvez 25 anos. E nos próximos 25 anos pode acontecer muita coisa e podemos mitigar bastante os eventuais desastres que possam ocorrer”, faz notar Luís Matias. Para Fernando Carrilho, “a possibilidade de existirem sistemas de observação capazes de transmitir em tempo real aquilo que se está a passar é uma revolução a todos os níveis”. Além disso, a detecção sísmica é importante, uma vez que o anel CAM abrange três placas tectónicas — a euroasiática, a americana e a africana.

Em Portugal, esta informação é obtida nos dias de hoje através de bóias com sensores que são submersos e que “vão sendo recolhidos de vez em quando”, o que fica “caríssimo, porque é um barco especial que é deslocado”, diz José Barros. Depois é necessário substituir as baterias dos aparelhos e voltar a colocar os sensores debaixo de água, e a informação só chega a posteriori e tem “pelo menos seis meses”, acrescenta Yasser Omar. Com o novo sistema, os sensores estarão mais próximos do eventual epicentro, pelo que a informação será mais detalhada e fiável, podendo ser enviada a cada segundo para terra. “Ninguém quer dar um alerta de tsunami falso”, observa Yasser Omar.

“Estes serão os primeiros cabos de utilização híbrida em termos mundiais”, afirma José Barros. Embora existam já cabos submarinos com sensores capazes de detectarem actividade sísmica, estes são reservados para esse uso exclusivo, como acontece, por exemplo, no Japão. “O problema é que são extraordinariamente caros e esta solução que se está a pensar implementar não seria assim tão cara, porque estaria à boleia de um cabo de telecomunicações.”

A substituição dos cabos de comunicações submarinos foi analisada por um grupo de trabalho, criado pelo Governo em Maio de 2019, que inclui representantes dos ministros das Finanças, do Planeamento e das Infra-estruturas e Habitação, dos governos regionais dos Açores e da Madeira e da Anacom. O grupo de trabalho entregou, em Dezembro, um relatório com 12 recomendações calendarizadas ao executivo, que está agora a analisá-lo. Ao Governo foi aconselhada a constituição de um operador com participação pública, uma vez que “está em causa um problema de coesão territorial do país”, diz José Barros, tendo sido ainda recomendado que se recorra a fundos comunitários para financiar o projecto.

Para Yasser Omar não restam dúvidas: “É a oportunidade de Portugal ser pioneiro no mundo em lançar uma infra-estrutura de telecomunicações que tem também esta componente científica, tecnológica e de aplicação à protecção civil e dar o exemplo ao mundo.”

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