A eutanásia não matou o Parlamento

Raramente vi o Parlamento estar assim à altura da gravidade do tema debatido, sem cair numa demagogia folclórica e eventualmente obscena.

Um dos argumentos principais dos defensores do referendo sobre a eutanásia era o de que o Parlamento não dispunha de legitimidade suficiente para aprovar uma legislação tão controversa e radical sobre a vida e a morte, até porque os dois principais partidos não tinham incluído essa questão nos seus programas eleitorais – e também por haver hoje, supostamente, uma desconfiança crescente e generalizada nos políticos.

Acontece, porém, que a sessão parlamentar do passado dia 20, onde os cinco projectos de lei apresentados pelo PS, Bloco, PAN, PEV e IL foram aprovados por margem confortável, terá apanhado de surpresa alguns dos que se habituaram a ver o Parlamento como um mero circo de disputas retóricas e gratuitas de deputados e governantes, de crispações artificiais que se arrastam e repetem penosamente. É que, desta vez, a sessão teve uma sequência e uma lisura que proporcionaram uma leitura serena das diferenças de posição entre os vários partidos e deputados – e, por vezes, como aconteceu com o PSD, dentro do mesmo partido. Para além da identificação ou oposição dos eleitores face às intervenções parlamentares, pode dizer-se que houve um leque esclarecedor e amplo de posições em que o Parlamento reflectiu a sua diversidade com uma nitidez civilizada (excluindo, é claro, as alarvidades patéticas do “clown” Ventura). E houve até momentos de elevação pouco comum, como o da intervenção do deputado do PSD André Coelho Lima a favor da despenalização da eutanásia em nome da autodeterminação individual.

Como antigo deputado, sinto-me particularmente à vontade para dizê-lo depois de ter seguido a sessão na íntegra: raramente vi o Parlamento estar assim à altura da gravidade do tema debatido, sem cair na “rampa deslizante” – expressão agora na moda a propósito da eutanásia – de uma demagogia folclórica e eventualmente obscena. Porventura com excepção do PCP – cuja posição reiterada sobre a eutanásia tende a ser incompreensível, para além de não compaginável com o seu aliado PEV – e da Iniciativa Liberal – cujo deputado foi o único a aprovar o seu projecto e a rejeitar os demais, numa atitude complexada, temerosa e deselegante –, o conjunto de posições a favor ou contra a eutanásia contribuíram para salientar a dignidade do debate e da própria Assembleia da República, tornando ainda mais contraditório, inexplicável e sem sentido o recurso ao referendo (a não ser por motivos ideológicos ou pessoais não assumidos e enredados numa retórica falaciosa, fazendo tábua rasa do que se passou na sessão parlamentar). Não, ao contrário do que os ortodoxos “referendistas” pretendiam, a eutanásia não matou o Parlamento.

Mas, agora, é essencial que os trabalhos na especialidade, com vista a fundir os vários projectos de lei, sirvam para ter ainda mais em conta as reservas e receios daqueles que – como alguns grandes amigos meus – temem os abusos praticados por terceiros em nome do direito individual a morrer com dignidade. Um direito que, repito, reivindico para mim mesmo se porventura vier a ser confrontado com essa opção terminal.

P.S.: Conheci-o pessoalmente num debate em que ambos participámos sobre o 25 de Abril em Paris e confirmei o que me haviam advertido a seu respeito: que era um narcisista, um snob e um arrogante quase insuportável. Mas nem isso me impediu de continuar a considerá-lo um dos meus mestres de jornalismo, director da revista de que fui leitor fidelíssimo durante quase meio século, o Le Nouvel Observateur (nada a ver com a sua pobre versão actual, Obs), autor de editoriais de uma riqueza informativa e literária verdadeiramente singular – e que continuou a escrever com mais de 90 anos. Morreu quase nas vésperas de chegar aos 100. Era Jean Daniel.

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