Vasco Pulido Valente

Quantas pessoas haverá capazes de se exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.

Em Setembro de 1974, fui convocada por Fernando Lopes para uma “reunião de trabalho” no Centro Português de Cinema. À hora marcada, cinco da tarde, compareci no local. Éramos mais de uma dúzia de pessoas, a maioria delas ligadas ao cinema, outras eram jornalistas e eu era estudante de História na Faculdade de Letras na Universidade de Lisboa. A ideia, se bem me lembro, era produzir um documentário sobre Portugal. Ideia vaga, que caberia ao Vasco precisar. Mas não havia maneira de o Vasco chegar.

Finalmente, com mais de meia hora de atraso, lá entrou o personagem – que eu não conhecia nem nunca vira – com ar sorridente e desportivo. Disse umas graçolas sobre o Spínola a que eu não achei graça nenhuma. Do alto dos meus 26 anos, talvez no auge da minha infantil arrogância e insolência, enfrentei a criatura e repreendi-o por ter feito esperar tanto tempo tanta gente. Ou seja, não podia ser mais atrevida e inconveniente. A reunião lá começou e já não sei como acabou. Cada um foi à sua vida, e eu à minha. 

Quinze dias depois, o telefone toca em minha casa. Atendi. Era o Vasco Pulido Valente a perguntar-me se eu não quereria ir trabalhar com ele no recém-criado Departamento de Programas Político-Sociais na RTP, do qual ele fora nomeado coordenador ou chefe ou outra coisa qualquer. Fiquei estupefacta! Mas não levei mais do que dois ou três segundos a perceber que ele tinha apreciado a minha irreverência. Ao longo da vida, nunca mais esta qualidade me serviu de trunfo para nada – bem pelo contrário, serviu-me para arranjar sarilhos e inimizades. Este episódio, à primeira vista tão banal, revelou-me que encontrara uma pessoa muito especial e peculiar. 

Eu lá entrei para a Televisão, e o Vasco bateu a porta duas ou três semanas depois. Déramo-nos bem, estabelecera-se entre nós uma espécie de amizade e dentro de pouco tempo já tínhamos amigos comuns. Mas mantive sempre com o Vasco uma relação à parte. Almoçávamos ou jantávamos juntos com regular assiduidade. Começámos pelo “Isaura”, que frequentámos bastante tempo; daqui passámos para o “Polícia”, onde jantávamos quase quinzenalmente; e, num upgrade final, mudámo-nos para o “Gambrinus”: já tínhamos subido na vida o suficiente para sustentar este luxo. 

Mas foi ainda no tempo do “Isaura” que o Vasco um dia me deixou completamente desconcertada. Falávamos sobre as pessoas, as suas qualidades e defeitos. Eu disse qualquer coisa como – “Ninguém fala dos seus defeitos mais graves ou feios”. Resposta: “Pois eu falo”. Pergunta: “Então diz lá um defeito teu daqueles que as pessoas não mencionam.” Resposta: “Olha, por exemplo, sou mentiroso.” “Repete lá isso!” “Eu sou mentiroso”. Fiquei atónita e sem palavras: tanta coragem moral! Desde esse dia passei a olhar para o Vasco com muita admiração e muito respeitinho. Quantas pessoas haverá capazes de se exporem com tanto desassombro? Só conheci uma. Chamava-se Vasco Pulido Valente.

Não tem fim o que lhe devo. De todas as vezes que estivemos juntos aprendi sempre alguma coisa com ele; ou levava para casa uma questão para pensar. Principalmente, foi com o Vasco que aprendi a escrever história, num tempo em que a produção historiográfica portuguesa, esmagada entre o academismo e o marxismo, era praticamente ilegível. Sobre isto, o Vasco era divertidíssimo, mormente quando dedilhava as suas cordas mais cáusticas e mordazes, que eram as minhas preferidas.

Estas duas qualidades, sobretudo, irritavam os leitores das suas inúmeras crónicas: que era um pessimista crónico, talhado para só ver o lado sombrio da existência. De facto, esta não lhe aparecia pelo lado solar, e ele não estava disposto a dourar a pílula da vida ou o mundo. Vasco Pulido Valente sempre foi o implacável escritor de uma justificada desesperança.

A sua inteligência deslumbrava – do Vasco Pulido Valente se pode dizer, com toda a pertinência, que era um génio. A sua cultura enciclopédica era esmagadora – mas esta, trabalhada e assimilada pela sua mente superior, transformou-a ele num método de pensar. A inexcedível beleza da sua prosa servia à maravilha esta espécie de alquimia. 

Resta acrescentar que existe um fio condutor que confere coerência ao que muitas vezes pareciam incongruências: a sua absoluta intransigência em relação à Liberdade. Foi um homem livre e sempre respeitou a total liberdade dos outros, mesmo quando esta tocava as raias da extravagância. Parece fácil ou evidente? Não, é muito difícil, e foi, em Vasco Pulido Valente, a forma privilegiada da sua generosidade. 

Sugerir correcção
Ler 10 comentários