Pedro Baptista, um cidadão do Porto

Havia nele, ao mesmo tempo, um profundo desespero e uma ingénua esperança em relação à condição humana.

“Sabes o que é o pior de estar morto? É não nos podermos defender dos elogios que nos farão aqueles que pouco prezámos durante a vida.” Estávamos a almoçar num velho restaurante do Porto e tínhamos acabado de ler o elogio ditirâmbico que uma pessoa que não apreciávamos tinha feito a um amigo comum acabado de morrer. Era assim o Pedro Baptista. Muitas vezes conflituoso, nalguns momentos irascível, em certas ocasiões injusto. Só que esse era apenas o outro lado de tudo aquilo que verdadeiramente o caracterizava: uma exigência radical de dignidade no plano moral, uma rejeição absoluta das regras do cinismo mundano, um olhar irónico diante de tudo o que espelhava a mesquinhez e as pequenas vilanias dos homens. Havia nele, ao mesmo tempo, um profundo desespero e uma ingénua esperança em relação à condição humana. Talvez fosse esse mesmo o traço mais marcante da sua complexa personalidade. Daí as suas atitudes serem tidas, em muitas ocasiões, por excessivas e votadas a alguma incompreensão. Se olharmos para além da superfície das coisas, porém, constataremos a existência de uma unidade subjacente ao seu percurso cívico e político. 

O Pedro era, antes de tudo, um homem do Porto. Nunca conheci ninguém que se identificasse tão profundamente com a cidade, com a sua História, com os seus poetas e pensadores, com as suas mulheres e homens do povo, com os seus lugares e as suas memórias, com o seu principal clube de futebol. Ele falava com a mesma paixão de Raul Brandão, de Sampaio Bruno, de Almeida Garrett e do Futebol Clube do Porto. Profundamente patriota, oscilando entre a inquietação metafísica de uma portugalidade essencialista e a exaltação de uma consciência nacional de inspiração democrática-revolucionária, ele, no mais profundo de si mesmo, cultivava a utopia de um Porto alcandorado ao estatuto de cidade-Estado. Um Porto sem muralhas, ao mesmo tempo burguês, democrático e inteiramente aberto ao mundo. O mundo imenso que ele contemplou desde criança nos areais da Foz.

O seu percurso político é conhecido. No final dos anos sessenta e no início dos anos setenta participou activamente no combate à ditadura adoptando um posicionamento marxista no plano doutrinário e aderindo a movimentos de extrema-esquerda. Acabou por chegar ao maoísmo, mais por pulsão anarco-libertária do que por qualquer outro motivo. Nisso não se distinguiu de um movimento próprio da sua geração que, um pouco por toda a Europa, se associou às teses maoístas por uma vontade de heterodoxia intimamente associada à paixão pela liberdade. Isso hoje pode parecer estranho, mas basta olhar para o que foi o percurso ulterior de muitos jovens maoístas para perceber como isso é verdadeiro.

Contrariamente a muitos outros, o Pedro Baptista não só nunca renegou esta fase da sua vida como declarou sempre ter bastante orgulho nela. Falava desse tempo como a idade matricial da sua vida. Quem o conheceu à época salienta sempre a sua extraordinária coragem física. Foi, sem dúvida, uma das principais figuras do movimento estudantil portuense de contestação à ditadura e, pouco tempo depois, o carismático líder da OCMLP. Curiosamente, este partido maoísta era o único partido português com sede no Porto.

Alguns anos mais tarde, consolidado o modelo da democracia representativa e verificada a plena integração europeia do país, Pedro Baptista aproximou-se do PS. O mundo mudara radicalmente com a implosão da União Soviética e a desqualificação intelectual e moral do modelo político-económico que lhe estava subjacente. Pedro Baptista integrou a Plataforma de Esquerda antes de ser candidato à Assembleia da República pelo PS pelo círculo eleitoral do Porto. Foi eleito e desempenhou as funções de deputado durante quatro anos. Foi, aliás, um parlamentar muito interventivo que nunca prescindiu de um espírito crítico e que revelou especial empenhamento nalgumas causas especialmente polémicas, dentre as quais sobressai a regionalização do país. Foi dos deputados que mais contestou o nosso ancestral modelo de organização política demasiado centralista.

Viria a abandonar o PS profundamente desiludido com o que a vida partidária contém de subjugação do espírito crítico e de valorização do carreirismo burocrático. O Pedro era um homem de causas mas não era um homem de partido. Quando mais tarde tentou formar um – o Partido do Norte – confrontou-se, definitivamente, com essa sua característica. Nem como líder ele estava fadado para os rituais, os códigos, os calculismos e os silêncios do mundo partidário. A experiência terminou num insucesso.

Nas duas últimas décadas, Pedro Baptista produziu uma vasta e relevante obra nos domínios histórico e filosófico concentrando a sua reflexão no estudo do pensamento português contemporâneo. Legou-nos um importantíssimo estudo sobre a figura de Newton de Macedo e diversíssimos ensaios sobre pensadores como Sampaio Bruno, Raul Proença, Delfim Santos, Pinheiro dos Santos e Leonardo Coimbra. É também da sua autoria um interessantíssimo estudo histórico sobre a primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto (de 1919 a 1931), Faculdade essa que se constituiu numa escola de excepção sob vários pontos de vista.

Nos últimos seis anos, Pedro Baptista reconciliou-se com a vida política através da participação no movimento cívico-político criado em torno da candidatura de Rui Moreira à presidência da Câmara Municipal do Porto. Testemunhei por diversas vezes a enorme admiração que o Pedro tinha por Rui Moreira e pelo que ele, a seus olhos, representava. Via nele o herdeiro e a mais adequada expressão contemporânea da tradição liberal-democrata que identificava com o período mais brilhante da história do Porto. Manteve essa opinião até ao fim. Na nossa última conversa telefónica, ocorrida na noite anterior à sua morte, o Pedro Baptista disse-me várias vezes que o Rui Moreira fora o único político que nunca o havia desiludido. Escrevo isto porque sei que o Pedro gostaria que o dissesse.

Este texto ficaria incompleto se não me referisse àquela que foi a grande referência humana da vida do Pedro Baptista, a sua mulher Palmira. Julgo que não houve uma única conversa, das centenas que tivemos, em que ele não tivesse feito qualquer alusão a ela.

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