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A aliança venenosa: a Turquia, a Rússia e o domínio da Síria

Na Síria, a Turquia arrisca-se a que a Rússia lhe mostre que não é a potência que julgava ser, sem que os seus aliados da NATO sintam um dever de solidariedade político-militar.

1. A Turquia e a Rússia têm em comum passados grandiosos. Ambos os Estados são herdeiros de imensos impérios que colapsaram no século XX, como consequência directa ou indirecta da I Guerra Mundial. A Rússia ainda conseguiu recompor o império dos czares, metamorfoseando-se em União Soviética, mas esta acabou também por se desagregar em 1991. Vladimir Putin descreveu o colapso da União Soviética — que levou a Rússia a perder imensos territórios do Báltico à Ásia Central, deixando grandes minorias russas ‘órfãs da mãe-pátria’ — como a maior catástrofe geopolítica” do século XX. Uma visão provavelmente partilhada pela grande maioria da população russa.

No caso da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan tem similar visão sobre o final do Império Otomano. Aí ocorreu a catástrofe da perda de territórios, dos Balcãs ao Médio Oriente árabe. Algumas populações turcas, ou turcófonas, ficaram também fora da República da Turquia que lhe sucedeu. Eclipsou-se ainda a autoridade religioso-política sobre os muçulmanos sunitas, dentro e fora do império, que o sultão-califa dispunha, pelo radicalismo secularista de Mustafa Kemal Atatürk.

2. A Síria é um território histórico do Império Otomano e Recep Tayyip Erdoğan procura (re) adquirir ascendente sobre essa antiga província árabe do império. Vê-a como sendo parte da sua esfera de natural de influência. A ambição pode ser vista como uma sequela histórica da formação dos modernos Estados-Nação que alimentou, quase sempre, contestação, disputas territoriais e conflitos sectários. No cerne do problema está o facto de o princípio da soberania nacional não se adaptar facilmente a populações que viveram longos séculos em territórios imperiais.

A fronteira da Turquia com a actual Síria mostra o problema. O Sul da Turquia tem substanciais populações árabes na província do Hatay (um território designado como Sandjak dAlexandrette durante o mandato francês para a Síria, entre as duas guerras mundiais), que a Turquia anexou em 1939. Todavia, a Síria como Estado independente nunca reconheceu tal anexação. Para além disso, a área sudeste da Turquia, que se prolonga até à fronteira com a Síria (e Iraque e Irão), é um território histórico de populações curdas, tal como é a parte contígua do território da Síria, do outro lado da fronteira. No passado otomano que se prolongou até inícios dos século XX, curdos e árabes, sunitas e alauitas, eram apenas alguns dos muitos povos e religiões de um império onde a lógica nacional moderna era desconhecida. 

3. Não é surpreendente que a ambição (neo) otomana da Turquia tenha levado à decisão de apoiar abertamente a revolta contra Bashar al-Assad iniciada em 2011. Nessa altura, estávamos no contexto da chamada ‘Primavera Árabe’. No Ocidente, muitos sem qualquer conhecimento substancial dessa parte do mundo — e das suas complexidades culturais e políticas —, alimentavam ilusão de estarem a assistir ao início de uma nova era de democracia, liberdade e direitos humanos. Seria uma espécie de réplica das revoluções de 1848 na Europa, ou da queda do muro de Berlim de 1989, agora no Sul do Mediterrâneo. A retórica diplomática do Governo turco alimentava similar ideia: tratava-se de apoiar as forças ‘democráticas’ da oposição contra o Governo ditatorial de Bashar al-Assad.

Na realidade, foi uma configuração do conflito tão tranquilizante quanto enganadora. O autoritarismo opressor de Bashar al-Assad é inquestionável, mas a Turquia de Recep Tayyip Erdoğan está longe de ser um modelo de democracia, de liberdade e de direitos humanos. Seria estranho se quisesse criar um Estado genuinamente democrático do outro lado da fronteira, quando perverte a democracia liberal na sua própria casa.

Claro que existiu um cálculo estratégico da Turquia, de ganhos em derrubar Bashar al-Assad. A chegada ao poder de um Governo oriundo da maioria árabe sunita da população — na qual a Irmandade Muçulmana, que Erdoğan também apoia, dispõe de significativa influência — instalaria um poder amistoso subordinado à influência da Turquia. Não é o caso de Bashar al-Assad, que é oriundo da minoria alauita, próxima do xiismo e aberta à influência do Irão. Entre outras vantagens, provavelmente permitiria fazer um tratado sobre a fronteira entre os dois países, encerrando o contencioso sobre o Hatay, território onde a Síria sempre se recusou aceitar de jure a soberania da Turquia.

4. O cálculo estratégico inicial da Turquia, baseado na convicção de ser possível afastar o governo Bashar al-Assad através de uma guerra por procuração — ou seja, numa guerra feita por forças interpostas, onde a Turquia não se envolveria directamente —, acabou por redundar num grande fracasso. A aposta principal foi no ‘Exército Livre da Síria’, formado sobretudo por desertores do exército sírio e islamistas próximos da Irmandade Muçulmana. Todavia, este nunca se mostrou capaz de derrotar militarmente as forças governamentais, mesmo nos momentos mais críticos para estas durante os primeiros anos do conflito — nessa altura o Irão e o Hezbollah libanês foram fundamentais.

A partir de 2015, a intervenção militar russa na guerra da Síria afastou quaisquer hipóteses de sucesso da abordagem inicial da Turquia ao conflito. Uma viragem quase total da estratégia político-militar turca surgiu a partir de 2016, emergindo gradualmente uma espécie de entente cordiale entre Erdoğan e Putin. Este (re) posicionamento estratégico — alimentado habilmente pela Rússia —, foi para Erdoğan o resultado de uma dupla frustração: o falhanço do seu objectivo de afastar Bashar al-Assad e ganhar influência na Síria, com a Rússia a mostrar-se um obstáculo intransponível a partir de 2015; a constatação de que os seus aliados da NATO e da União Europeia não se importariam muito com o seu afastamento, se a tentativa de golpe de Estado ocorrida no ano seguinte na Turquia tivesse tido sucesso. 

5. Apesar das declarações mútuas de amizade dos últimos anos, a Rússia é um parceiro incómodo para a Turquia, e o inverso também é válido. Há profundas razões históricas e geopolíticas para ser assim, as quais subsistem ainda que sob outras formas.

No passado de ambos os Estados, o Império da Rússia e o Império Otomano, competiam e chocavam militarmente com frequência. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a Rússia dos czares teve um papel central no retrocesso no Império Otomano na Europa, em particular nos Balcãs. No século XX, após a II Guerra Mundial, foi o medo da poderosa União Soviética a da sua reivindicação dos territórios do Leste da Anatólia — conquistados na guerra russo-turca de 1877-1878 e cedidos pelos bolcheviques, após a revolução de 1917, num momento de fraqueza — que levou a Turquia a aderir à NATO e a procurar o abrigo do poder militar-nuclear dos EUA.

Após o final da União Soviética, na Ásia Central, do Azerbaijão ao Quirguistão, a Turquia compete com a Rússia pela influência política, económica e cultural-religiosa nessas antigas repúblicas soviéticas. Actualmente, na guerra da Líbia, a Turquia e a Rússia apoiam diferentes facções em conflito. No caso da Síria, a guerra está a entrar na sua fase final envolvendo uma dura luta pelo controlo da província do Idlib. É um território contíguo ao Hatay — com a soberania turca sobre este contestado pela Síria — e praticamente o último reduto dos rebeldes que lutam contra Bashar al-Assad, incluindo múltiplos grupos islamistas-jihadistas. Podem a Rússia e Turquia continuar a sua (superficial) convergência de interesses, ou estes vão chocar abertamente levando a que a ambição (neo) otomana da Turquia fique enterrada no Idlib? 

6. Em inícios de Fevereiro de 2020, vários soldados turcos foram mortos em confronto com forças governamentais sírias no Idlib. É improvável que a ofensiva militar do Governo sírio — e das suas milícias aliadas apoiadas pelo Irão —, não tenha sido coordenada (e aprovada) directamente pela Rússia. Esta ofensiva coloca um sério problema à Turquia e às suas ambições de controlo da zona fronteiriça contígua, no interior do território da Síria.

A aproximação da batalha final do Idlib mostra os limites e contradições das relações turco-russas e da entente cordiale iniciada em 2016. Na realidade, é uma aliança venenosa desde o início, baseada numa calculista convergência pontual de interesses, mas onde nem a Rússia confia na Turquia, nem a Turquia confia na Rússia.

Com o espaço em disputa a estreitar-se no território sírio — e com os objectivos contraditórios da Turquia e do Governo sírio de Bashar al-Assad em clara rota de colisão —, o ‘veneno’ dentro da aliança russo-turca vai fazer-se sentir. Já estamos a assistir a bombardeamentos russos de grupos pró-turcos em Idlib, os quais tentavam atacar forças governamentais de Bashar al-Assad. Nada indica também que a Rússia vá permitir que a Turquia cause sérios danos às forças sírias. Talvez incursões menores, como tem acontecido com os raides de Israel, feitos com a complacência russa.

Mas, na Síria, a Turquia arrisca-se a que a Rússia lhe mostre que não é a potência que julgava ser, sem que os seus aliados da NATO sintam um dever de solidariedade político-militar. Afinal, foi a Turquia que unilateralmente entrou com os seus exércitos no Norte da Síria e não o inverso.

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