As três religiões praticadas no tempo de D. Afonso Henriques

Apesar do esforço em consequência da reconquista e da fundação de Portugal, o período de maior tolerância religiosa terá sido o inicial.

No tempo de D. Afonso Henriques eram três as religiões que se praticavam no reino: judeus, cristãos e muçulmanos, hoje designadas como as religiões do Livro.

Relativamente a Portugal, embora não haja documentação local averiguada, defendem alguns autores ser verosímil a presença de hebraica no ocidente peninsular no tempo de Estrabão (58 a.C. a 25 d.C.) e Filon (13 a.C. a 54 d.C.). Os judeus acompanhar-nos-iam sempre ao longo dos tempos, não obstante as vicissitudes que penosamente tiveram de suportar, incluindo a sua expulsão, no tempo de D. Manuel I. Deram ao longo da história o seu contributo no campo da ciência, da cultura, da educação e do comércio.

Foi no séc. I da era cristã, ou seja, no domínio romano, que chegou à Península, a doutrina do Evangelho, como é de presumir da alusão de S. Paulo à existência de colónias judaicas em Espanha, dado o seu método de evangelização: “...agora que terminei o meu trabalho nestas regiões, espero ir ter convosco (cristãos de Roma”)...” “Irei visitar-vos quando for de viagem a Espanha...” (cf. Carta aos Romanos, 15,23-24).

Em 711, conflitos entre fações, por ocasião da eleição do novo rei dos Visigodos, e para corresponder aos apelos dos partidários de Vitiza, veio uma expedição, provinda do norte de África, comandada por Tarique, desembarca em Espanha. O confronto dos dois exércitos ocorreu junto das margens do rio Guadalete. O exército de Rodrigo foi completamente desbaratado. Rodrigo morre na batalha e com ele a monarquia visigoda.

Bastaram cinco anos para que os muçulmanos dominassem praticamente toda a Península, salvo pequenos redutos nas montanhas setentrionais onde se tinham refugiado nobres, bispos e os restos de um exército desmantelado. Aos cinco anos da conquista muçulmana vão corresponder mais de setecentos anos de reconquista cristã.

Não obstante as lutas da reconquista, operadas pelo nosso primeiro monarca, nunca as minorias judaicas e muçulmanas deixaram de existir e de afirmar as suas diferenças culturais e religiosas. Em Lisboa, e em outras regiões, ficaram até a viver em bairro próprio (Mouraria) com alcaide, eleito de entre os da sua raça e da sua fé. Com igual tolerância viviam os judeus nos seus bairros (judiarias), com as suas comunas e sinagogas.

Mas, a situação dos moçárabes variava politicamente, consoante a sua submissão resultasse de acordos de capitulação (Sulh) que levavam a uma dependência absoluta ou de tratados de paz (Ahd) que conferiam certa autonomia político-administrativa, conferindo-lhes, neste último caso, o direito que vinha da monarquia visigótica. O direito islâmico aplicava-se tão somente às relações mistas entre moçárabes e muçulmanos.

Apesar do laborioso trabalho de investigação dos nossos historiadores, nomeadamente no âmbito do direito português, existe ainda um longo caminho a percorrer no sentido de alcançar o verdadeiro contributo da civilização muçulmana e judaica na cultura portuguesa.

O Alcorão não era apenas um livro religioso, era também um código político, moral e jurídico, de tal modo que todas as normas da vida individual e social dos que o seguiam estavam fundamentalmente nele consagrados, como expressão da vontade de Deus (Alá).

Como fonte básica do direito existia também a “Sunna” correspondente ao relato das ações praticadas por Maomé durante a sua vida: o que ele disse, o que fez e o que conseguiu. Como o Alcorão e a “Sunna” estavam longe de de proporcionar resposta a todas as questões jurídicas, desenvolveram-se as fontes complementares do direito muçulmano: “o consenso unânime da comunidade” (ijma), pois, o que todos querem é a vontade de Alá, e ele prometeu aos seus crentes que a sua comunidade nunca se porá de acordo com um erro”.

Com o tempo, foram-se estabelecendo relações normais entre cristãos e muçulmanos na vida quotidiana que não podiam deixar de influir na formação de certos costumes comuns e na adoção por cada uma das populações, de algumas regras jurídicas da outra, no tocante ao comércio, vida económica e aos contratos. Vivendo nas cidades e em bairros próprios e no campo, mesmo que em forçado convívio, muitos cristãos foram-se mesclando com muçulmanos e adotando trajes, usos e termos deles. Eram os moçárabes, ou seja, semelhantes aos árabes.

Foi, portanto, durante esse largo convívio, como dominadores dos cristãos, como seus adversários, tratados de igual para igual, ou como seus dominados que os muçulmanos receberam e transmitiram influências culturais. Em Portugal, existem vestígios deixados no âmbito da toponímia, das palavras, arte, arquitetura civil, religiosa e militar, da agricultura, espaços funerários e objetos do quotidiano (Veja-se o Campo Arqueológico de Mértola e o museu islâmico).

São conhecidos vários forais e cartas de povoação, concedidas pelo nosso primeiro monarca, salientando-se as cartas de fidelidade (amizade) concedidas, em 1170, “tomando sob a sua proteção os “mouros forros” de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal. Tal política de tolerância passou para seu filho, D. Sancho I, que sempre que se refere aos judeus e muçulmanos trata-os por “meus judeus e meus mouros”.

Esta atitude de tolerância haveria de sofrer um rude golpe, porquanto,  D.Manuel I, para não comprometer o seu casamento com Isabel de Castela, aceitou a condição imposta por esta, no sentido da expulsão de Portugal dos judeus e mouros, caso até outubro de 1497 não recebessem o batismo. Um pouco mais tarde, em 1536, no tempo de D. João III, haveria de surgir a inquisição, cuja extinção apenas ocorreu, formalmente, pelas Cortes Constituintes de 5.04.1821.

Se fizermos o confronto dos vários períodos da nossa história chegamos, facilmente, à conclusão que apesar do esforço em consequência da reconquista e da fundação de Portugal, o período de maior tolerância religiosa terá sido o inicial. Os factos revelam que D. Afonso Henriques, além de um excelente militar, político e diplomata era tolerante em matéria religiosa: as conversões faziam-se ou por interesses económicos das pessoas ou por convicção, sendo que as mesmas aconteceram tanto do lado muçulmano como do lado cristão (moçárabes e renegados). Não era fácil, na altura, fazer política, dada a complexidade dos costumes locais e a sua harmonização com culturas tão diversificadas como a judaica, a muçulmana e a cristã, ainda para mais em tempo de guerra. No cômputo geral, atentas as circunstâncias resultantes das campanhas da reconquista, verifica-se que o nosso primeiro monarca atuava sempre por razões políticas, tentando previamente o acordo de rendição, como aconteceu, por exemplo, com a tomada de Lisboa, sempre com a ideia da independência a norte e a reconquista a sul.

Idêntica autonomia jurídica se produziu em relação aos judeus, pois, as comunidades judaicas, tanto sob o domínio árabe, como sob o domínio cristão continuaram, igualmente, a tutelar-se pelo seu direito, também ele confessional e personalista. A população judaica tornou-se expressiva nos Estados da reconquista, mas o contributo do direito hebraico ter-se-á operado, sobretudo por meio das influências cristãs e muçulmanas, dando o seu contributo, essencialmente, no campo da ciência, da cultura, educação e comércio. É ainda de salientar também a autonomia jurídica e judicial que gozou uma grande parte da população que se manteve cristã (regimes do código visigótico, do direto romano e canónico).

A atual hostilidade entre entre muçulmanos e judeus não é uma inevitabilidade histórica, porquanto em muitos aspetos, muçulmanos e judeus estão mais próximos do que em relação aos cristãos. Na verdade, conviveram bem ao longo dos séculos, não só em Espanha e Portugal, como em Istambul (Turquia) e nos Balcãs. O seu profundo antagonismo, na atualidade, surgiu apenas no século XX e, nada tem a ver com a religião, mas sim com o conflito político no Médio Oriente, entre israelitas e palestinianos, de tal modo que a relação entre judeus e muçulmanos não poderá melhorar sem se resolver o conflito israelo-palestiniano.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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