O calcanhar de Aquiles

A urgência da falta de habitação não é compatível com a demora das respostas públicas. Ou eu muito me engano, ou não mudar este estado de coisas com respostas nacionais efectivas arrisca-se a ser um grande calcanhar de Aquiles na confiança das pessoas na democracia.

Moeda e cidade são os principais multiplicadores do capitalismo, escreveu há muitos anos Fernand Braudel. Talvez essa realidade nunca tenha sido tão visível como hoje. A concentração urbana crescente no mundo, salientada por todos os demógrafos, acompanha a globalização dos mercados financeiros e imobiliários. A habitação torna-se cada vez mais um mero produto financeiro, cobiçado pelo sector do alojamento local, ou “short term rental”, que por sua vez também se globalizou. O processo tem feito estragos no acesso à habitação em muitas cidades. A instabilidade habitacional e a carestia de preços estão a deixar ficar para trás os últimos a tentar chegar ao mercado, em especial os mais jovens.

Portugal não está imune a este processo, que já não é só um problema dos centros metropolitanos. Segundo o Instituto Politécnico da Guarda, um terço dos habitantes das Beiras e Serra da Estrela vive em situação de grave carência habitacional. O índice de preços da habitação no nosso país aparece no topo das tabelas na União Europeia e no FMI. Os vários programas lançados pelo governo, desde o 1.º Direito, que se dirige aos mais carenciados, ao programa de arrendamento acessível, que deveria actuar no mercado para aumentar a oferta, têm escassos resultados por enquanto. As autarquias vão criando programas de acesso à habitação, mas a uma escala que rapidamente é ultrapassada pelo mercado global. É, como costumo dizer, uma luta entre David e Golias.

O tema começa a tornar-se predominante em campanhas eleitorais em vários pontos do mundo – desde o “housing for all” de Bernie Sanders, com resultados surpreendentes nas primárias americanas, ao tabelamento de rendas na cidade de Berlim, onde ainda há poucos anos foram vendidos milhares de fogos municipais que agora fazem a maior falta para alavancar a oferta. Na Irlanda, o Sinn Féin, há décadas afastado da governação, ganhou eleições insistindo nos temas da habitação e da saúde. Em Deli, capital da Índia, o partido nacionalista do senhor Modi averbou uma enorme derrota para o AAP, que baseou a sua campanha em duas propostas simples: resolver os problemas das pessoas e combater a corrupção. Em França, um ministro do senhor Macron acaba de anunciar a possibilidade de expropriação de alojamentos devolutos nas mãos da banca e seguradoras. Um pouco por todo o mundo a dificuldade do acesso à habitação e a consequente degradação das condições de vida de milhões de pessoas revela o aprofundamento das desigualdades no rendimento e na propriedade, como Thomas Piketty vem demonstrando.

Em Portugal, o tema esteve praticamente ausente do debate orçamental. Para a maior parte das famílias, pagar um pouco menos pelo IVA da electricidade tem um impacto infinitamente menor que o peso das despesas da habitação ao fim do mês. No entanto, foi o tema do IVA que polarizou os debates e as agendas mediáticas. Do lado do governo, apresentou-se como grande esforço subir a despesa efectiva da habitação para 150 milhões de euros, valor que representa uns magros 0,2% da despesa efectiva prevista para toda a administração central. Os reforços de 200 milhões de euros propostos pelo PCP ou de 150 propostos pelo BE não passaram. O PS conseguiu uns trocos na especialidade (9 milhões na totalidade), mas nada disto transpareceu no debate orçamental [1].

Como foi recentemente noticiado, 150 milhões de euros é o valor pelo qual foi avaliado um único terreno urbano em Lisboa, na zona das Amoreiras, que pertence a um fundo maioritariamente detido pelo Novo Banco. Pois bem, é este o valor que o Orçamento do Estado destinou este ano para a habitação em todo o país. E vamos continuar a financiar o Novo Banco sem sequer colocar em cima da mesa a passagem para o Estado de parte da carteira imobiliária daquele banco? Nada disto faz sentido.

Entretanto, prepara-se uma grande descentralização para os municípios das competências na habitação, sem se conhecer o envelope financeiro e patrimonial que a irá suportar. As pessoas irão continuar a bater à porta das câmaras à procura de apoios que os municípios não estão em condições de proporcionar. A urgência da falta de habitação não é compatível com a demora das respostas públicas. Ou eu muito me engano, ou não mudar este estado de coisas com respostas nacionais efectivas arrisca-se a ser um grande calcanhar de Aquiles na confiança das pessoas na democracia.

[1] Uma análise exaustiva da habitação no Orçamento do Estado aprovado para 2020 pode ser vista no meu site pessoal, em https://www.helenaroseta.pt

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