ARM Collective: não querem ser “reis da rua”, só querem fazer arte

Já abriu ao público em Lisboa a exposição ARMosphere 3.0, da dupla de street art ARM Collective, que já conta com quase 20 anos de carreira. Em entrevista ao P3 nos preparativos da inauguração, Gonçalo Ribeiro (MAR) e Miguel Caeiro (RAM) reflectem sobre os anos de colaboração. “A paixão que temos pela pintura é o nosso refúgio.”

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Gonçalo Ribeiro (MAR) e Miguel Caeiro (RAM) Rui Gaudêncio

Pode ser difícil dar com o Coletivo 284. Construído num bloco de garagens na Rua das Amoreiras, em Lisboa, a entrada refundida já no interior de um complexo habitacional só se deixa assinalar pelo grande logótipo cá fora, em negro, e um enorme 284 a branco. À porta, o cartaz da ARMosphere 3.0, “exposição street art & graffiti”. Entra-se e o som dos berbequins não deixa esquecer que ali se está a montar uma exposição. “É a banda sonora do filme”, ironiza Gonçalo Magalhães, coordenador do espaço.

O filme, esse, já vai longo. “Convidámos estes dois pesos pesados, dois dinossauros da street art”, diz o coordenador, caracterizando assim o ARM Collective, a parelha composta por MAR e RAM. Há andaimes e escadotes aqui e ali, telas encostadas à parede e espalhadas pelo chão, em perfeita harmonia com a azáfama do staff — é um caos arrumado, portanto, que já não será detectável a partir desta quarta-feira, 19 de Fevereiro, data da inauguração da exposição. Ouve-se chamar por MAR e RAM a cada dez segundos, a assinalar que as nomeadas artísticas são socialmente soberanas face aos nomes próprios — Gonçalo Ribeiro e Miguel Caeiro, respectivamente.

Se estão desconfortáveis com a visita do P3, não dão pistas. Ou talvez sim. “Eu vou ali pôr um blazer”, anuncia Miguel, de t-shirt branca. “Faz-te falta alguém para te meter uns pozinhos na cara”, arremata Gonçalo, na paródia. “Nem sabes no que te vieste meter”, avisam a quem os escuta. A ver vamos.

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Gonçalo, de 45 anos, e Miguel, de 43 — “eu sou sagitário, ele é gémeos”, informa-nos o primeiro — só se cruzaram ao fim de seis anos a pintar, o primeiro no Seixal, o último em Sintra, cidades onde foram criados. “Não havia Internet, não havia telemóveis, mas havia uns meetings de graffiti e o pessoal ia, mas era tudo mesmo underground”, recorda Miguel.

A parceria começou por volta de 2003. O nome surgiu num almoço no El Corte Inglés, em Lisboa. “Sou MAR e ele é RAM, a junção que fazia sentido era ARM, o ARM Collective”, explica Gonçalo, MAR nestas andanças à conta do oceano e do surf. “Posso considerar o meu quintal a Praia da Fonte da Telha [na Costa da Caparica]”, brinca. Já Miguel, um fã das “culturas anciãs”, foi buscar a ideia para a assinatura RAM ao faraó egípcio Ramsés. “Desde que era pequenino e vi o Indiana Jones que tenho esse lado mitológico.”

A inspiração para as suas obras tanto vem do “universo da ficção científica", no caso de Miguel, com predilecções que vão desde 2001: Odisseia no Espaço (1968) de Stanley Kubrick, passando por Alien: O Oitavo Passageiro (1979) de Ridley Scott a Interstellar (2014) de Christopher Nolan. Já Gonçalo devora bandas desenhadas da Marvel e também gosta também de uma boa graphic novel, o que, diz, o influencia na escolha de cores e no traço.

Uma “viagem” de dez anos

Enquanto ARM Collective, os amigos dizem ter criado um corpo de obra “muito único”, que junta os elementos mais figurativos de Gonçalo aos mais abstractos de Miguel. Tudo isto em cores intensas, a dar vida tantas vezes a alegorias, quer em mural, quer em tela, numa constante procura para que “seja importante para quem está a ver”.

Para Miguel, ARMosphere 3.0 “tem a ver com o El Dorado" que toda a gente tem dentro de si, aquele bocadinho maravilhoso da essência humana. “Eu vejo maçãs — não, estou a brincar”, diz Gonçalo, que enxerga na mostra “interiores, exteriores, universos”. Gostam de contar histórias nas suas peças – “com a nossa maluqueira, o nosso gostinho por ter sempre uma piadinha” –, mas há sempre a necessidade de ter um lado sério, em contraste com tempos já idos, em que “era sempre muito mais ‘punkalhice'”. E também apreciam “perceber a visão que as pessoas têm": “Fazes a tua própria viagem, há ali qualquer coisa que para ti pode ser um mundo e para nós é outra coisa.” Por isso, não se alongam muito na descrição do que fazem.

“É trabalho musculado”, garante Gonçalo Magalhães, ao caracterizar o que se pode ver na exposição. A mostra “permite dar uma visão de como os ARM amadureceram ao longo do tempo”, ao apresentar obras feitas nos últimos dez anos, em três momentos distintos. O mais recente é a série de pinturas sobre tela ARMosphere 3.0 a primeira, feita em 2017, também está presente. Também é possível conhecer uma obra mais antiga, Time Travellers, um projecto desenvolvido há uma década, numa fábrica abandonada em Sintra, onde estiveram ano e meio a pintar paredes. “Eram mais novos, por isso é que aguentaram aquela tareia”, remata. As pinturas perderam-se quando o complexo foi vendido. “Pouco mais de meia dúzia de amigos é que as viram”, diz o coordenador do Coletivo 184 em frente a uma instalação vídeo, complementada pelos registos fotográficos, que dão ao público ideia do que aquilo foi.

À época, começaram a pintar as paredes da fábrica – “sem sabermos bem o que estávamos a fazer”, segundo Miguel – e foi um ápice até “rolar uma história”. O que surgiu? “Basicamente é uma mulher que está a dormir, grávida, e que está a sonhar a vida toda do filho que ainda não nasceu.” Na altura, sonhavam com uma inauguração, em que iam ter duas mesas, “uma com pipocas para os humanos e outra com milho para os pombos, que era quem habitava aquilo”, graceja Miguel. 

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A importância de trabalhar em colectivo

“A paixão que temos pela pintura é o nosso refúgio”, confessa Gonçalo, que ali vê um escape dos problemas. Já para Miguel, “é um vício” – “a nossa vida pessoal teve de se adaptar”. “Há”, claro, “dias mais produtivos que outros, como em qualquer trabalho – ainda no outro dia pintámos quatro telas – mas, normalmente, se fizermos uma obra, já é bom.”

São os “trabalhos grandes” que os aproximam, as alturas em que “se aguenta o barco”. E começaram a trabalhar em conjunto precisamente por isso, por acharem que “fazia algum sentido partilhar a aventura”.

— “Já corremos meio mundo juntos” — afirma Gonçalo.
— “Eu já dormi mais vezes com ele em quartos de hotel do que com a minha mulher” — confirma Miguel.
— “És pouco dado!...” – profere, sarcasticamente, o primeiro, em mais um momento a dar mote para a risada.

Projectos como Time Travellers – “uma maluqueira” – só em dupla e em espontaneidade são possíveis. “Se tivesse sido uma coisa encomendada era uma tortura dos diabos, íamos estar condicionados, mas ali não, estávamos só condicionados a uma amizade”, evidencia Miguel.

Time Travellers terá sido uma obra feita fora da legalidade, mas Gonçalo justifica-o com “a relação muito própria" entre a pintura de rua e a apropriação de edifícios “abandonados”. Ainda assim, não se vêem como “reis da rua”, mas Miguel assume que têm “facilidades em certos bairros mais complicados”, onde entram sem muitos medos, isto porque vão lá para “oferecer arte” a comunidades que lhes abrem as portas.

“A responsabilidade pela obra que tu deixas é muito importante porque não és tu quem vai ficar lá a viver 24 horas sobre 7, vão ser as pessoas, e não podes impingir algo que prejudique a comunidade”, sublinha Gonçalo. O princípio é sempre o de criar “coisas de certa maneira inspiradoras”.

O antigamente e o agora

“Fazer parte da mobília?” Do imaginário visual de cidades como Lisboa? Miguel prefere nem pensar nisso. Agora começa a regressar, mas por uns tempos tentou afastar-se de trabalhos para eventos na capital — “sentia-me o arroz doce para todas as festas”. Foi quase uma revolta, propagada pelo mundo das redes sociais, em que “de repente se começou a dar valor a muitos artistas que nunca sequer tinham provado um amor ao que fazem na rua” — o oposto do caminho que ele e Gonçalo calcorrearam, primeiro como autodidactas. Revelam ainda estupefacção, após tantos anos “a lutar por áreas para pintar”, ao ver “pessoas que nunca pintaram na vida terem prédios” para intervir.

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Por haver pessoas que começam “com olho no dinheiro em vez de olho no coração”, “há muita porcaria na rua”, mas, concedem, “também há coisas espectaculares”. O importante, elabora Gonçalo, antes de haver qualquer percurso, é “perceberes e respeitares a História, o trabalho dos que estavam cá antes”. Isso e saber-se “sempre onde queres que o teu trabalho esteja”, algo de que está consciente e pelo qual vai sempre lutar.

Construir um legado “não é fácil”, mas “quem começa hoje em dia tem facilidade em termos de aprendizagem”, garante Miguel, não fosse o YouTube e toda a informação ao dispor na Internet. O essencial é “descobrir-se o próprio estilo”, numa altura em que se propicia muito “a cópia da cópia”. No entanto, avisa Gonçalo, “hoje não basta seres só artista”. “Tu tens que ser artista, empresário, contabilista, gajo do marketing; quando dizem ‘aquele gajo não se aproveitou’ – claro que não, ele não trabalhou para fazer o seu trabalho ser visto.”

A gratificação por todo o trabalho árduo é conseguir ser “um exemplo”, ter um “trabalho com força suficiente para inspirar”. Os fãs mais novos são quem lho confirma, com as mensagens de agradecimento que lhes endereçam. “Miúdos que já pintam há algum tempo, sabem perfeitamente quem somos, o que fizemos, por onde já andámos.”

Entre o desígnio de falhar e o sucesso

Se questionados quanto àquele que consideram ser o seu trabalho mais notável, a resposta é um disparo rápido e mútuo: o mural Os Lusíadas, em Lisboa. A abarcar os dez cantos da obra seminal de Luís de Camões, foi realizado como mote de uma iniciativa dos 20 anos da revista Visão, em 2013. “Fizemos mesmo a nossa interpretação”, garante Miguel, num tópico que requereu estudo, mas em que puderam dar asas à criatividade.

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Desde os primórdios, no hall of fame em Sintra, “quando a cena em conjunto começou a bater”, até a trabalhos mais recentes na Turquia – onde gostavam muito de voltar — evidenciam nestas recordações um espírito muito blasé quanto ao que passaram e hão-de passar. “Estamos sempre designados para falhar”, repete várias vezes Miguel ao longo da conversa. Já Gonçalo só tem a dizer que nunca sabem “como é que vai ser ou o que é que vai acontecer, só que vai resultar bem”.

Para ARMosphere 3.0, que pode ser visitada até 1 de Março, Miguel quer é ver desconhecidos. “Os nossos amigos e família já nos seguem, já vêm, e nós já não os espantamos porque estão habituados. Eu quero é caras novas, essa é a expectativa que tenho.”

— “A expectativa é… tenho de perguntar isto à minha mulher” – atrapalha-se Gonçalo, enquanto puxa do telemóvel, à caça de alguma mensagem. “É isto, ‘a expectativa é a mãe da decepção’!” – lê, finalmente.
— “Aí tens, street life!” — conclui o colega.

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