A eutanásia e a obstinação legislativa: um apelo ao veto presidencial

Numa sociedade com acesso equitativo e atempado aos melhores serviços médicos, incluindo os cuidados paliativos, poder optar pela eutanásia ou pelo suicídio assistido em determinadas condições e sem estar sujeito a qualquer tipo de coacção deveria ser um direito. Nesta discussão, a história do tetraplégico Ramón Sampedro, contada no filme Mar Adentro, é incontornável como exemplo de aprisionamento no corpo. Apesar dos inegáveis méritos dissuasores da condenação moral do suicídio e da condenação legal do assassínio, existem situações extremas em que manter tais condenações é desumano. Numa sociedade laica assente na “autonomia do Homem”, “independência do indivíduo” e “reconhecimento do pluralismo das opções morais”, como escreveu Francisco Assis, ninguém pode impor a outros um sofrimento atroz e prologando, ainda que, por convicção religiosa ou estoicismo, julgue que o aceitaria para si.

Em textos recentes, Jaime Nogueira Pinto e Rui Ramos criticaram a legalização da eutanásia. O primeiro ensaiou uma associação com o eugenismo que soa forçada, mas ambos lançam uma dúvida pertinente: como garantir que a legalização da eutanásia não funcionará como pressão difusa (sugestão social) ou directa para que se enverede por essa via? Sem grande esforço de imaginação, pensemos num cenário novelesco em que familiares ávidos ou egoístas agem em conluio para promover uma decisão aparentemente autónoma que libertará uma herança ou lhes simplificará a vida. Pensemos na subtil pressão de alguma chefia hospitalar vidrada em indicadores de desempenho a cumprir. Pensemos num idoso irremediavelmente acamado e sem visitas quando vê um telejornal em que se discute a sustentabilidade do SNS. Quem garante que a solução da eutanásia lhe trará mais conforto do que angústia? Da mesma forma que a ocasião faz o ladrão, também a possibilidade do acto pode forjar o suicida, como se demonstra pela associação nos EUA entre os números do suicídio e os da posse de armas ou o aumento de suicídios após a mediatização de um suicídio particularmente impressionante ou de alguém famoso, um fenómeno conhecido como o efeito Werther. Salvo erro, está por estudar se há um efeito Werther associado à eutanásia e ao suicídio assistido.

Sem perder muito tempo com o tacticismo na discussão sobre se deve ser o Parlamento a legislar ou se esta é uma questão para referendo, defendo que uma questão desta complexidade técnica não é referendável. Nenhuma questão que suscite de imediato outras questões após uma primeira resposta ou que implique uma série de orações subordinadas para tornar inequívoca a primeira pergunta é referendável. De resto, somos um povo sem grande pulsar cívico que não conseguiu mobilizar-se para tornar juridicamente vinculativo um que fosse dos três referendos realizados em Portugal nos últimos 25 anos, porque estava um belo dia de praia ou houve nesses dias uma qualquer outra actividade mais importante do que votar, mesmo quando por duas vezes esteve em causa a interrupção voluntária de gravidez (IGV), tida por polarizadora.

Uma das virtudes da democracia parlamentar é fazer com que decisões complexas sejam tomadas pelos representantes do povo, pessoas em princípio mais capazes e menos instrumentalizáveis do que o cidadão comum, além de pagas por todos nós para pensar sobre estes assuntos. Em teoria, o Parlamento tem as condições para conduzir uma discussão, consultar a sociedade, pedir pareceres técnicos e amadurecer posições.

Infelizmente, ainda mais grave do que o PS não ter colocado a despenalização da eutanásia nos seus programas eleitoral (o BE, PAN e Livre fizeram-no) foi a forma precipitada e prepotente como este tema volta a ser discutido no Parlamento, depois da votação chumbada em 2018. Os deputados são tecnicamente mais competentes para decidir sobre a eutanásia do que 230 indivíduos recolhidos ao acaso na rua, mas não são mais competentes do que colégios de médicos e enfermeiros ou do que o Conselho de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

Ora, quem se der ao trabalho de comparar os projectos de lei dos quatro partidos submetidos a votação em 2018 e na semana passada constatará que as críticas do CNECV (que cilindrou o projecto de lei do PAN com 19 votos contra e apenas um a favor) foram ignoradas. Friso que o CNECV revelou já grande respeito pela autonomia do indivíduo, ao ponto de ter concordado com o direito de uma testemunha de Jeová a recusar transfusões de sangue que lhe salvariam a vida, o que só dá mais peso às inquietações que levantou quanto à eutanásia. O CNECV é um órgão meramente consultivo, mas já em 2018 tinha sido ultrapassado pelos acontecimentos, como se percebe neste desabafo à época de João Lobo Antunes: “Não se deixa de estranhar que a lei que exige que seja pedido parecer ao Conselho de Ética para as Ciências da Vida é a mesma que o dispensa para a discussão e votação em Assembleia da República.” Em 2020, as críticas do CNEV e da Ordem dos Médicos, entretanto reiteradas (1, 2), foram ignoradas pelos partidos, que resolveram avançar com uma nova investida, apresentando projectos que no essencial permanecem idênticos aos de 2018. Perante esta postura não é de prever que venham a mostrar grande abertura na discussão na especialidade. Para quê então pedir pareceres se os deputados têm todas as certezas?

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Bruno Lisita/Arquivo

Estou a par da existência de opiniões díspares entre a comunidade médica quanto à legalização da eutanásia e do suicídio assistido, mas legislar à revelia da organização que representa os médicos revela uma prepotência legislativa preocupante e desinteresse quanto ao seu cumprimento. O Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM) repetiu em 2020 o chumbo que já tinha dado em 2018 a quatro projectos. Quererão os nossos deputados partilhar com os cidadãos o eventual relatório secreto que os tranquiliza quanto à percentagem de médicos nos serviços de cuidados paliativos que se declararão objectores de consciência se a eutanásia for uma possibilidade? Ou terão eles a ilusão de que a inaceitável exigência de justificação do pedido de escusa do médico objector de consciência que propõem terá um efeito dissuasor e até algo disciplinador?

A eutanásia está apenas legalizada na Holanda (desde 2001), Bélgica (2002), Luxemburgo (2009), Colômbia (2015) e Canadá (2016). Na Holanda, Colômbia e Canadá, o processo que conduziu à legalização da eutanásia foi marcado por pedidos de eutanásia dramáticos e mediatizados. O caso da Bélgica é peculiar porque a eutanásia já era praticada antes de estar legalizada. Curiosamente, em Portugal, que se apronta para ser o sexto país a legalizar a eutanásia, a eutanásia activa não se pratica e não houve um único pedido de eutanásia mediatizado. Como se explica então esta vontade legislativa insaciável e precipitada?

Portugal regista duas histórias de sucesso na agenda progressista: a despenalização da IVG e o casamento entre pessoas do mesmo sexo (apoiei ambas). O caso da IVG é significativo pois a evolução dos números do aborto desmentem os cenários catastrofistas de “rampa deslizante” com que os opositores a esta lei há uns anos procuraram assustar a população. Não é pois de excluir que estas duas vitórias dos movimentos progressistas sobre as forças conservadores, incluindo a igreja católica, tenham criado alguma euforia e vício de vitória, o que explicaria a vontade de fazer passar uma lei sem acautelar o seu cumprimento, nomeadamente ao contar com a colaboração dos médicos, nem garantir que para cada caso de morte digna e que honre a autonomia da pessoa não haverá outro em que alguém, aparentemente por vontade expressa, na verdade foi vítima dos interesses de outrem ou vítima de uma nova ideologia.

Não será fácil convencer a Ordem dos Médicos, dada a incompatibilidade entre o seu código deontológico e a eutanásia. Mas talvez um princípio de discussão fosse possível se os projectos de lei contemplassem a diferença entre suicídio assistido e eutanásia ou outras formas de retirar protagonismo ao médico na fase final, o que poderia passar por permitir que seja um familiar, amigo ou um voluntário a executar o acto derradeiro (uma injecção num cateter não é tecnicamente exigente).

Já quanto aos mecanismos que previnam a manipulação directa ou difusa da vontade, há duas falhas óbvias. A primeira: nenhuma proposta consegue circunscrever com rigor o âmbito da aplicação da despenalização da eutanásia. O que é a “antecipação da morte” no caso de uma “doença incurável e fatal” se há doenças destas cuja morte não se pode prever? Será a perda de visão uma “lesão definitiva” que justifica a “antecipação da morte”? A segunda: o processo proposto, que envolve confirmações sucessivas e o aval de diferentes figuras, foi visto por muitos comentadores como “equilibrado”, mas lembra o episódio da busca de um salvo-conduto na casa dos loucos do livro Os Doze Trabalhos de Astérix e não é certo que a burocratização da “antecipação da morte” represente uma melhoria substancial, tendo em conta a existência de um testamento vital, que assegura a autonomia do indivíduo quando já não têm condições de expressar a sua vontade, a forma como se vai aplicando a sedação terminal, que alguns autores (ex. 1, 2, 3) entendem como uma forma de eutanásia passiva, sobretudo quando conjugada com a interrupção do tratamento ou a suspensão da hidratação e nutrição, e ainda os casos pontuais de eutanásia e suicídio assistido clandestinos que vão ocorrendo no nosso país.

É muito fácil criar consenso em torno de um caso como o de Ramón Sampedro, estatisticamente raro entre os pedidos de eutanásia. O desafio para o legislador e a sociedade, segundo um princípio utilitarista de maximização do bem-estar geral, é este: que características deve ter a lei de despenalização da eutanásia e como nos devemos preparar para que possamos dar resposta ao pedido de um novo Sampedro sem levar a mortes indesejáveis por contágio social? Os casos da Holanda e da Bélgica, países em que a eutanásia foi legalizada há quase duas décadas, podem oferecer algumas respostas empíricas, mas tal exige um trabalho de sociologia fina que não se reconhece em nenhum dos projectos de lei.

O sucesso da lei da IVG criou um desleixe preocupante. Porque há duas diferenças óbvias entre a IVG e a eutanásia. A primeira: no caso da IGV, havia um ponto de comparação que era trágico (a injustiça social e a as vítimas dos abortos de “vão de escada”), mas no caso da eutanásia qual é o ponto de comparação se a prática não existe e não há registos oficiais de que seja pedida e praticada? A segunda: a despenalização da IGV é uma lei que não levanta qualquer ambiguidade, mas a despenalização da eutanásia dá uma grande margem de discricionariedade aos decisores, envolve pessoas numa condição ainda mais frágil e dependente do que uma jovem adolescente que engravidou e acontecerá num clima de guerra cultural crescente em que os opositores se sentem enganados pelo Parlamento. Por outras palavras, estão criadas todas as condições para que venhamos em breve a ter o caso de eutanásia que “correu mal” mediatizado pelos críticos da eutanásia, fazendo com que tudo volte à estaca zero assim que seja outra a composição parlamentar ou se entre num limbo legal, como sucedeu na Colômbia entre 1997 e 2015.

Está anunciada a aprovação de um projecto de lei que legaliza a eutanásia sem esclarecer muitas dúvidas legítimas. Há razões para estarmos preocupados quanto à qualidade das propostas, o seu efeito prático, a lacuna que é não se distinguir entre eutanásia activa, passiva e suicídio assistido e a perenidade das alterações legislativas propostas. No Luxemburgo, o Grão-Duque Henrique recusou-se a assinar a lei da eutanásia devido às suas convicções católicas e, perante um dilema, optou por acabar com o artigo da constituição do Luxemburgo que exigia a assinatura do chefe de Estado em qualquer acto legislativo. Marcelo Rebelo de Sousa não precisa de fazer um sacrifício tão grande. Não precisa sequer de invocar a sua condição de católico praticante. Basta-lhe recorrer a argumentos técnicos e algum bom senso para vetar uma lei deficiente e prepotente que não conta sequer com a simpatia de um simples ateu de esquerda.

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