Quem sou eu para julgar ou limitar a liberdade?

A questão da eutanásia toca o mais profundo das nossas emoções, o desejo de respeitar o outro, a sua dor e a sua liberdade. Mas é preciso estar alerta para que, desejando sinceramente respeitar, não abandonemos a liberdade à solidão. Legalizar a eutanásia dispensa as nossas emoções desse estado de alerta.

Diante da dor de alguém há sempre um pudor que surge, um silêncio que impede o excesso das palavras. Experimento isto muitas vezes nas relações de todos os dias. Por isso, a ideia de “julgar os outros” incomoda-me. Não direi que estou a salvo desta atitude, mas procuro precaver-me de tudo o que possa ser percebido como tentação de superioridade moral. Quando me perguntam “quem és tu para julgar” sinto uma espécie de embaraço que me leva muitas vezes a ficar calado.

Nesse sentido, o debate da eutanásia talvez fosse mais um desses casos em que o silêncio fosse a melhor solução. E, na verdade, eu não quero julgar quem pede a eutanásia. Como seria possível? Nenhum de nós estará em condições de fazer um juízo moral definitivo sobre o pedido dessa pessoa. No entanto, validar ou não um pedido de eutanásia não é absolver ou condenar ninguém, é ajuizar sobre a dignidade da sua vida. Ora, a dignidade não deveria ser sujeita a juízo. Quando admitimos que uma vida pode ser considerada mais digna do que outra, estamos a julgar a pessoa não pelas às suas ações ou opções, por aquilo que nos pede, mas quanto ao seu valor intrínseco. E esta dimensão deveria permanecer para sempre indisponível para juízos. Quem sou eu para julgar o outro? Quem sou eu para julgar a dignidade da sua vida?

O recato que sinto diante da dor de alguém é o mesmo que sinto diante da sua consciência como lugar sagrado da liberdade. Nenhuma liberdade está imune a limites e condicionamentos, mas em alguns casos o que condiciona a liberdade pode colocá-la em risco. Sabemos que é grande o número de idosos que vive isolado, sabemos que é frágil a rede de cuidados paliativos. Será difícil reconhecer que, em muitos casos, estes fatores ameaçam a possibilidade de um pedido de eutanásia verdadeiramente livre? E será mesmo uma questão de consciência pessoal um pedido que convoca outro para decidir sobre a viabilidade da nossa vida?

Nem a liberdade nem a individualidade são valores absolutos. Sou livre e sou pessoa inserido numa teia de relações. Se me isolo ou me deixam isolado nas minhas escolhas, se sou entregue à solidão absoluta, destrói-se a solidariedade que sustenta a sociedade, os laços que tornam possível a vontade e a liberdade individuais.

Ainda que no meio de uma ponte, cheio de recato, silêncio e pudor, diante de um pedido de eutanásia, movido por toda a compaixão, não sou ninguém para dizer: “compreendo-te, uma vida assim já não é digna”, ou “tu é que sabes, estou contigo mas decide sozinho”. A questão da eutanásia toca o mais profundo das nossas emoções, o desejo de respeitar o outro, a sua dor e a sua liberdade. Mas é preciso estar alerta para que, desejando sinceramente respeitar, não abandonemos a liberdade à solidão. Legalizar a eutanásia dispensa as nossas emoções desse estado de alerta.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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