Eliminar o sofrimento, não a vida!

Despenalizar ou legalizar a eutanásia é aumentar o desconforto dos idosos mais pobres, mais sozinhos, mais deprimidos e vulneráveis, que tenderão a questionar se não é tempo de deixarem de ser um fardo.

O PS sempre deu liberdade de voto e deixou [a eutanásia] à consciência de cada um dos deputados e, portanto, não tem uma posição de partida e não consta do programa de Governo.
António Costa, PÚBLICO, 24.09.2019

Verificando-se uma vontade de aprovar legislação que permita a eutanásia considero não poder ficar calado, porque, em certos momentos, calar é trair a nossa consciência. Deixo, aqui, algumas modestas notas.

Sou muito sensível às diferentes formas de sofrimento, com que são confrontados os mais vulneráveis, os mais velhos, os que têm doenças debilitantes, e creio que a ação política deve ter como um dos seus objetivos centrais erradicar o sofrimento evitável, mas considero que a eutanásia não é a resposta para o sofrimento, porque elimina não o sofrimento, mas a vida.

O sofrimento na doença e no morrer atinge os mais velhos, mas também crianças com doenças muito dolorosas, e encontra-se desigualmente distribuído em função dos níveis de rendimento. São os cidadãos dos países mais pobres a nível internacional os que têm mais elevados níveis de sofrimento na doença. Entre nós são os mais pobres que têm acesso a piores cuidados continuados, quando têm, que muitas vezes não têm acesso a cuidados paliativos e aos medicamentos que permitem combater e limitar a dor com mais eficácia.

A prioridade tem de ser generalizar o acesso a cuidados continuados e a cuidados paliativos para todos, apoiar a investigação científica em todas as áreas que permita combater a dor e combater as doenças que mais sofrimento provocam. Os progressos verificados no combate ao VIH/sida devem ser uma inspiração para combater o cancro e outras doenças que comportam imensa dor ou as que provocam progressiva perda de consciência. Acompanhamos os que pensam que não nos podemos resignar aos níveis de sofrimento atualmente existentes, ser possível fazer progressos científicos nestas áreas se isso for considerado politicamente prioritário e houver o investimento necessário e os que defendem que são necessárias políticas públicas na linha do atrás referido.

Neste contexto, despenalizar ou legalizar a eutanásia é aumentar o desconforto dos idosos mais pobres, mais sozinhos, mais deprimidos e vulneráveis, que tenderão a questionar se não é tempo de deixarem de ser um fardo, se não estão a mais para os serviços públicos, para as famílias, se não estão a comprometer o desempenho e o progresso social dos seus filhos e netos.

A eutanásia não se confunde com a boa morte, nem com outras realidades e conceitos, como a obstinação terapêutica (distanásia), as decisões de não tratamento devido à futilidade terapêutica ou devido a pedido voluntário e competente dessa pessoa, a sedação paliativa ou mesmo com o suicídio assistido.

Quando falo de eutanásia refiro-me ao ato em que um médico (ou outra pessoa) mata intencionalmente uma pessoa através da administração de fármacos, a pedido voluntário e competente dessa pessoa.

Tornar a eutanásia legal em certos casos, que muitos já se apressam a considerar demasiado limitados, teria um efeito performativo nas nossas conceções quotidianas sobre a morte e o morrer e viola, em meu entender, o artigo 24.º (Direito à vida) da Constituição da República. Por tudo o que sumariamente referi, sou contra dar a outrem o poder de matar, mesmo que a pedido voluntário e competente dessa pessoa.

A nossa liberdade de opção, na morte como na vida, é sempre condicionada pelas circunstâncias em que se exerce e considero que a realidade social existente, incluindo as dificuldades de muitas famílias e dos idosos sozinhos, pressiona muitos cidadãos a resignarem-se a terminar prematuramente a vida, não por opção, mas para não se sentirem ou serem tratados como um fardo.

É uma pesada responsabilidade a dos deputados ao legislarem sobre esta matéria. Devem agir em consciência, da forma mais informada possível e estando atentos à situação e às necessidades de uma população cada vez mais envelhecida, em grande número pobre e vulnerável, mas cuja vida não é descartável.

Estão todos empenhados na procura das melhores soluções, mas elas não se equivalem e os cidadãos e os eleitores que consideram que o que faz falta hoje é eliminar o sofrimento e não a vida, assegurar cuidados paliativos e de qualidade para todos e apostar na investigação científica e no investimento público contra o sofrimento evitável, não consideram que a eutanásia seja uma boa solução.

A minha posição é muito clara: sou contra a eutanásia, mas também sou contra o referendo. A vida não é referendável, e um eventual referendo não permitiria debater com seriedade esta questão.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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