Os gatos

Só semanas mais tarde me apaixonei, sei lá como, pelo animal. Não sei precisar o momento. Aquilo foi progressivo. Todas as noites ia dando avanços, fisicamente falando, até que, quando dei por ele, estava deitado junto à minha cara no sofá.

Foto
Mag Rodrigues

Os meus pais nunca gostaram de gatos. Por isso, cresci com a crença de que são animais pouco afectuosos e nada fiáveis. Na visão dos meus progenitores, ter um gato por perto era o mesmo que conviver com um traidor sorrateiro, perigoso e sonso. Não podíamos deixá-lo adormecer aos nossos pés, acreditando na bondade e na fofice que o seu aspecto sugere porque correríamos o risco de acordar com a córnea de um olho no espeto das suas unhas.

Como podem imaginar, a opinião dos meus pais sobre os ditos felinos não deixou em mim a melhor das impressões. Contudo, calhou-me um filho adorador de gatos. O seu gosto foi acolhido pela família com perplexidade. Nunca ouvira ninguém elogiar os supracitados bichos. Na sua opinião, vá-se lá saber como a tinha formado, os gatos eram o melhor animal do mundo.

A insistência elogiosa sobre gatos tornou-se tão forte e persuasiva que, a custo, lá acedi ao seu pedido. Íamos ter um gato. Confesso que estava melindrada com a experiência. Não simpatizava nada com a ideia. E, contudo, conhecendo o meu carácter fiel e recto, sabia que depois de adoptado o bicho no seio familiar, a decisão era irreversível. Jamais seria capaz de abandonar um animal, fosse cão, gato ou leopardo-das-neves. Por muito terrível que fosse a convivência no espaço doméstico. O leopardo-das-neves é, diz o meu filho, o segundo melhor animal do mundo, a seguir ao gato. Sorte a minha, não é legal adoptar um leopardo-das-neves.

Pois bem, lá consegui arranjar um gato. Grande e gordo, com um ano de idade. Garantiram-me que era de confiança, mas sinceramente custava-me a acreditar. Nos primeiros tempos lá em casa, e apesar do regozijo exultante do meu filho, não conseguia aproximar-me muito dele. A nossa consonância física levava-me a acreditar que a coisa podia correr bem. Estava tão desconfiada dele como ele de mim, isso era claro. Confesso que gostei dessa característica. Assim talvez nos déssemos bem.

Parecia tão lento na aproximação aos desconhecidos quanto eu. Logo aí ganhou dois pontos. A verdade é que o tempo foi passando, e apesar de lamentar o tempo diário perdido a aspirar os quilos de pêlos que largava pela casa — até dentro das cuecas fui descobrir um pêlo dele! —, comecei a achar-lhe uma certa graça. Não fazia praticamente barulho, dormia e lavava-se a maior parte do tempo. De vez em quando, afiava as unhas no sofá e eu tinha de ralhar com ele, mas parava imediatamente. Era obediente e pachorrento, e tinha um grande estilo a caminhar pela casa naquele abanar sinuoso de cauda.

Só semanas mais tarde me apaixonei, sei lá como, pelo animal. Não sei precisar o momento. Aquilo foi progressivo. Todas as noites ia dando avanços, fisicamente falando, até que, quando dei por ele, estava deitado junto à minha cara no sofá. Percebi imediatamente o quão errado estava o oráculo dos meus pais — o gato não iria vazar-me uma vista ou algo do género. O seu ar, embora tímido, era claramente afectuoso. Comecei a fazer-lhe festas, foi instintivo. Ainda não parei de gostar dele.

Sugerir correcção
Comentar