Babaya Samambaia: quem é a drag queen que surpreendeu no Got Talent Portugal?

Pronta para destruir os preconceitos, a brasileira Babaya Samambaia arrasou este domingo no palco do Got Talent Portugal. Eleita Miss Drag Lisboa de 2019, orgulha-se de ser uma “uma bandeira ambulante”: “Quanto mais pessoas virem [drag-queens], maior é a chance de ser normalizado.”

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Ana Adriano Mota

O metro segue na linha amarela, parando em todas as paragens em direcção ao Rato: Saldanha, Picoas, Marquês de Pombal. É um pára-arranca constante, mas nem isso a impede de dar os últimos retoques. Todos os minutos contam. Segurando um pequeno espelho, vai aplicando o lip gloss cor-de-rosa. Apesar dos solavancos, consegue colar as dez unhas pretas postiças.

Vestida com um corpete preto e uma saia rodada com desenhos de jornais, segue para a Rua da Imprensa, onde se encontra o Trumps. É sexta-feira e Babaya Samambaia, nome de drag de Lucas Medeiros, prepara-se para mais uma actuação. Foi um longo percurso desde Belo Horizonte, no Brasil, até aos palcos de Portugal, onde se tornou Miss Drag Lisboa. Agora, ultrapassada a fase das audições, espera vencer o Got Talent Portugal — neste domingo, 16 de Fevereiro, estreou-se no palco do programa da RTP e foi aplaudida de pé. 

“Eu vim cheia de possibilidades”, admite ao P3. O primeiro trabalho que conseguiu foi no Algarve, num evento de quatro dias para a Remax, mas o mais significativo foi em Odemira. “Fomos os dois convidados para trabalhar num resort no Alentejo”, conta, por seu turno, Diogo Passuco, o colega de trabalho que rapidamente se tornou no melhor amigo. “Olhámos um para o outro e começámos a ver que éramos parecidos, os dois animados e os reis da festa”, recorda. O que os uniu foi terem encontrado “um inimigo em comum”, que tentavam ao máximo irritar. Assim, ficaram “manas exploradoras”, diz Diogo, entre risos. “Porque nós descobríamos tudo o que se passava e não era suposto sabermos.”

Uma verdadeira “mana exploradora”, Babaya demorou 22 horas para chegar a Portugal. “Foi um rolé”, lembra: fez escala na Turquia, onde teve de passar a noite. Quando aterrou em Portugal, só pensava no medo que tinha de ser barrada pela imigração. “Pelo amor da deusa, vá abrindo as portas de Portugal para mim”, pedia. Talvez a súplica tenha resultado, uma vez que não teve qualquer problema: “Finalmente estou aqui”, pensou. “Agora é conhecer o mundo inteiro, é engolir Portugal de cabo a rabo.”

Era inevitável sair do Brasil; para a família, no entanto, a partida foi uma surpresa. “Foi assim bem de repente”, diz Pedro, o irmão mais novo. “Quase morri”, confessa o pai, Kleider. Mesmo cheio de saudades, sabe que é difícil mudar a opinião do filho: “Quando decide uma coisa, vai com tudo”, esclarece. O irmão confirma-o: “Quando tem uma coisa na cabeça corre atrás e não espera muito tempo, bota a mão na massa.” Assim foi. No dia em que Jair Bolsonaro foi eleito, Lucas, 29 anos, tomou a decisão de se mudar. “Bateu uma decepção com o próprio país, com o próprio povo”, declara, confessando sentir “aversão” do Presidente do Brasil.

“Veado”, ouviu gritar, ainda durante o processo de eleição de Bolsonaro, enquanto lhe atiravam uma garrafa de água. Foi aí que percebeu que a discriminação se estava a normalizar. Até então, diz, “as pessoas sentiam preconceito, mas não a liberdade para manifestá-lo”; agora, com “alguém no poder que legitima o discurso de ódio”, é mais fácil que “qualquer irritação ou aversão vire motivo para agressões”, explica. Sentiu-o na pele como drag, mas também como Lucas — foi perseguido por um jipe com quatro homens que o “xingavam” e conseguiu fugir.

Passou o ano a juntar dinheiro. Mas, se a partida estava definida, o destino ainda era incerto. “Vou para qualquer lugar, mas aqui não fico”, pensava. Pensou primeiro no Uruguai — “Era bem no lado e estava politicamente muito mais aberto”. Mas foi a língua o que mais pesou na decisão. “O meu trabalho envolve muito a palavra, então vamos encarar Portugal e ver o que é que dá.” Tinha alguns receios. Sabia que muitos brasileiros também estavam a fazer o mesmo trajecto, mas estava curioso para perceber “quem eram os portugueses” para além “daquela visão do passado”, reflecte, referindo-se ao colonialismo. A chegada não podia ter sido mais surpreendente: “Encontrei quase um mini-Brasil”, refere, feliz. “Absorvem muito a cultura brasileira, é aquele lugar muito mais atravessado para outros países.”

Uma avestruz

Já por Lisboa, começou assim a desejar “vivenciar experiências diferentes e a abrir cada vez mais o leque de possibilidades”, inclusive enquanto transformista. Até porque em Belo Horizonte já não havia “muito espaço para crescer”, evidencia a irmã Natália. Mas se como bailarino arranjava audições e testes, conseguindo trabalhar como freelancer para a PMP Eventos, como Babaya Samambaia tudo foi “um pouco mais demorado”. 

Costumava ir ao Trumps por considerá-la a melhor discoteca em Lisboa com drag queens. Participava nos concursos das sextas-feiras, onde os participantes têm de se apresentar com um “look de acordo com o tema” escolhido. “Na melhor noite”, recorda, desapontada, chegou a ganhar 50 euros. Mas não chegava nenhum convite. Até que em Setembro de 2019 entrou no palco do Estúdio Time Out para competir no Miss Drag Lisboa, completamente tapada por uma capa preta, coberta de penas e brilhantes. Uma máscara prateada coberta de pedras preciosas imitava um bico, um maillot preto a combinar com a capa contrastava com os sapatos amarelos vivos. O look de avestruz impressionou e as restantes actuações não lhe ficaram atrás. Vestida com as cores da bandeira do Brasil (às quais acrescentou o cor-de-rosa), acabou por levar a coroa, tornando-se a Miss Drag Lisboa de 2019.

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Ana Adriano Mota

Para Babaya, o momento não podia ter sido mais simbólico, desde logo pela data em que aconteceu — 7 de Setembro, dia da comemoração da independência do Brasil. “E a gente celebrando juntos, sem divisão, o amor e a diversidade”, diz, emocionada. Foi, porém, um dia caótico: “Durante o concurso não dá muito para aproveitar e gozar daquela sensação porque é muita pressão. Mas depois, quando aparecem os frutos, aí se consegue gozar.”

A partir daí, começou a ser mais conhecida no meio. “O que mais me deu alívio foi conseguir ser legitimada pelo meu talento aqui”, sublinha. “Consegui mostrar o meu trabalho, mostrar as minhas raízes, quem eu sou.” E, finalmente, surgiu o convite que tanto ansiava para integrar a equipa do Trumps (“Foi uma conquista boa”) e outros, por exemplo, para participar no Drag Taste, uma experiência que junta drag com a culinária. “Portugal, na verdade, me recebeu muito melhor do que eu esperava”, acaba por confidenciar. No entanto, considera que a cultura queer está pouco “efervescente” quando comparado com o Brasil. “Eu sinto que ainda tem uma casca um pouco conservadora, um pouco tentando estabilizar as personalidades”, repara. Sonha voltar a ter um maior envolvimento político, como tinha com o seu canal do YouTube.

Do miúdo tímido para a mulher fatal

Esta Babaya Samambaia, “a rainha da noite, a diva”, como descreve Diogo, aquela que vence concursos e encanta multidões, é bastante diferente do rapazinho tímido que cresceu em Belo Horizonte. “Sempre fui muito capeta, mas um capeta interno”, admite. “Eu era muito tímido, conseguia ser uma pessoa com os meus irmãos e outra pessoa na rua.” Sempre adorou fazer os irmãos rir. “Ele é muito divertido, animado”, conta a irmã. “Em casa”, recorda Lucas, “era assim descolado, fazia piadas, os irmãos riam, mas na rua parece que não tinha uma linguagem igual às pessoas da turma”. “Era uma criança que estava mais na dele, muito estudioso”, explica a irmã. Sempre foi bom aluno. Ganhou uma bolsa de estudo para uma escola particular, onde fez o secundário. Adorava Química. Planeava ir para a faculdade, para ser fisioterapeuta ou mesmo químico.

No entanto, o pai não podia deixar de reparar que “era uma criança restringida, sem se conseguir destacar, sem se conseguir mostrar”. “Só me fui libertar mesmo quando entrei na dança”, admite Lucas. Estava no terceiro ano do ensino secundário e nunca mais conseguiu pensar noutra coisa. “Ficava o dia inteiro desenhando no meu caderno pessoas dançando e figurinos”, lembra. E os estudos passaram para segundo plano. Era previsível. A irmã relembra, com carinho, as “pequenas apresentações” que faziam para a família, onde dançavam, faziam teatro e cantavam. “Nasceu um artista”, afirma o pai, orgulhoso.“Era incrível como ele [já em criança] conseguia ser um artista, ele tem um dom que a gente não tinha.”

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Aos 20 anos conseguiu entrar para uma companhia, mas foi aos 15 que começou a dançar na igreja. Era na altura um “evangélico fervoroso”, explica. “Queria muito adorar Deus, orar e viver aquela vida intensamente.” Pensava, um dia, ser um “missionário que viaja, sem bens materiais, pregando a palavra do Senhor”. Hoje perdeu essa espiritualidade: “É impossível ser uma bicha, sendo muito religioso. Pelo menos eu não consegui encontrar uma crença que fosse compatível com a vida de uma bicha.” A “sexualidade e a expressão da sexualidade” foram a grande razão para essa separação. “Eu sentia muita culpa”, confessa, “fiquei quatro anos tentando ser heterossexual, mudar de vida, curar-me”. 

Essa sexualidade é bastante visível em Babaya Samambaia — está, aliás, na origem de todo este percurso. Lucas andava a ver uma série sobre psicanálise e “queria ser uma das personagens, que era muito sexy, uma mulher que tentava seduzir o psicanalista”. Queria ser uma Catherine Tramell, “poderosíssima, loira, que vai ao psicanalista só para seduzir”. Uma mulher fatal, que com um simples cruzar de pernas seduz qualquer um.

O que começou como um jogo de sedução acabou por ser bastante compensador. Foi com a psicanálise que conseguiu “olhar no espelho, ver as fragilidades e lidar com elas”, “falar tudo o que precisava”. Até o próprio nome de drag veio de uma das sessões. Não sendo a melhor cantora do mundo, foi num espectáculo em que tinha de usar a voz que o encenador lhe disse: “Quando Babaya entrar na sua vida, você vai ser outra pessoa”, referindo-se a uma professora de canto. Nunca tinha ouvido o nome, mas achou-o “lindo”, porque “soava brasileiro”. Na psicanálise a frase voltou-lhe à cabeça — e Babaya Samambaia nasceu. Depois, ao ver RuPaul Drag Race, começou a entender o universo drag de outra forma. “Eu vi naquelas pessoas artistas, não era só uma bicha efeminada querendo gritar e bater cabelo.” Foi aí que percebeu: “Também posso pensar minha arte através dessa máscara.” Deixou, então, de ver o seu lado feminino como “uma fraqueza”.

“Foi muito difícil assumir publicamente”, confessa. Ainda é “uma coisa surreal”, reconhece. “Sinto que ainda é um tabu, um homem que está trajado, alguém do género masculino que sai à rua como feminino.” Mas hoje tem orgulho em sair assim à rua, sente-se “uma bandeira ambulante”: “Quanto mais pessoas virem, quanto mais isso for quotidiano, maior é a chance de ser normalizado.”

A primeira vez que actuou como Babaya foi aos 23 anos, no Carnaval da sua companhia de dança. Já o pai não esquece quando o viu actuar no Palácio da Artes, em Belo Horizonte. Sentou-se na plateia, atrás de dois rapazes, e ouviu-os conversar: “Essa coreografia é dele próprio, é ele que fez tudo, é um cara tão dedicado, ele é fera”, escutou. Acabou por lhes tocar no ombro e dizer “é de meu filho que vocês estão falando”.

Babaya tem brio em fazer os próprios fatos, mas admite que é a parte mais difícil. É “muito artesanal”, demora várias horas e leva muita cola quente. Lembra-se de um fato que fez que demorou uma semana — coberto de pequenas braçadeiras de plástico, colou-as uma a uma com cola quente, queimando os dedos. Agora, sabe bem os sacrifícios de ser drag queen. Demora o dia inteiro a preparar-se só para uma actuação: uma hora a depilar-se, fazer a barba, esconder as sobrancelhas, três horas a maquilhar-se e ainda fixar a peruca. Mas é muito gratificante. Sente-se livre. “Não estou me boicotando, me segurando, me restringindo”, diz. Suspira com a mão no coração ao recordar a primeira vez que se apaixonaram por ela enquanto drag queen. “Eu fiquei muito realizada”, diz, a corar. Ser drag, na sua opinião, não é apenas “imitar uma diva, estar bonita, ser sexy”, mas também “liberdade, amor do feminino e de tudo o que muitas vezes é negado ou visto com outros olhos”.

No pequeno camarim do Trumps, onde a bola de espelhos que paira, pendurada pelo tecto, é suficiente para encher o espaço, Babaya aguarda com as outras drag queens o momento de entrar em palco. Vão discutindo a melhor forma para fazer o contorno do nariz, rindo e dançando até ser altura da actuação. É a última a pisar o palco, mas ocupa o lugar à frente na coreografia de grupo. As luzes roxas e verdes iluminam-lhe a cara, fazendo destacar as longas pestanas e o sorriso rasgado. Entre movimentos e espargatas, sente a emoção das pessoas, que fazem as várias horas de preparação valer a pena. Porque “estar no palco é sentir as pessoas ali vibrando com você e ficando loucas”.

* Estudante de Mestrado em Jornalismo na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa

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