Marega, os energúmenos e o Ventura

Não percebo como André Ventura pode sequer ter-se licenciado em Direito, pois uma série de unidades curriculares estão em falta, a começar pelos Direitos Fundamentais.

O que ontem se passou com Marega no estádio do Vitória é enquadrável na Lei n.º 39/2009, de 30/7, alterada pela Lei n.º 113/2019, de 11/9, a qual “estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos”, punindo como contra-ordenação os actos de racismo, cabendo-lhes uma coima, por cada agente, entre 1000 € e 10.000 €, para além de uma sanção acessória de sanção de interdição de acesso a recintos desportivos por um período de até 2 anos e da publicitação da decisão, com o nome dos arguidos, no sítio da Internet.

A entidade administrativa competente para o processo e aplicação das sanções é a APCVD (Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto), que, para o efeito, dispõe de 180 dias, prorrogável por igual período. Neste caso, há o dever de comunicar a decisão ao MP e à CICDR (Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial). Os infractores que venham a ser identificados – podendo e devendo-se usar-se, como prova, qualquer câmara que tenha televisionado o jogo ou as de circuito interno de vigilância – podem, antes mesmo da decisão final, ficar proibidos de ingressar em recinto desportivo enquanto se decide o processo contra-ordenacional. Conseguindo-se esta identificação, pode aplicar-se um processo mais rápido, que a lei designa de sumaríssimo.

Todavia, estes factos não se subsumem apenas a uma mera contra-ordenação, mas são ilícitos criminais, previstos no art. 240.º do Código Penal (“discriminação e incitamento ao ódio e à violência”).  No que aqui importa, “[q]uem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação (…) injuriar pessoa (…) por causa da sua raça (…) é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”.

Estamos perante uma directa emanação do princípio da igualdade do art. 13.º da CRP e é este bem jurídico que o tipo legal protege. Se se provar que agiram no âmbito de uma organização com estes fins, que a apoiaram ou financiaram, as penas passam para um a oito anos de prisão. Prevê-se ainda uma série de incapacidades para eleger e ser eleito para órgãos de soberania ou autarquias, mas, no caso, tendo em conta a factualidade, não são aplicáveis. O crime só é punível a título de dolo e as imagens são mais que claras quanto ao preenchimento dos seus elementos. O delito é público, ou seja, por certo o MP já abriu inquérito para apurar a responsabilidade criminal dos agentes pessoas singulares não se exigindo sequer queixa. Não se pode responsabilizar criminalmente o clube de que estes seres eram supostos adeptos, uma vez que não fazem parte dos seus órgãos sociais e não são trabalhadores do Vitória (art. 11.º do CP). Quando um comportamento é simultaneamente crime e contra-ordenação, como aqui, os agentes são punidos apenas a título do primeiro, embora as sanções acessórias da contra-ordenação se devam aplicar.

E o que dizer da ignomínia de Ventura e dos sucessivos posts no Facebook a tentar explicar o inexplicável da sua primeira reacção? A única sanção em abstracto equacionável seria a apologia ao ódio ou à discriminação rácica, mas o modo como escreveu, e mesmo reconhecendo-se os limites à liberdade de expressão, levam-me a concluir pela impossibilidade de imputação criminal. Resta a punição cidadã, que pode e deve ser bem mais grave. Que espero que seja, sob pena de a sociedade portuguesa estar gravemente doente. Não percebo como esta pessoa pode sequer ter-se licenciado em Direito, pois uma série de unidades curriculares estão em falta, a começar pelos Direitos Fundamentais. Mesmo que isto me possa causar alguns problemas profissionais, espero que nenhuma universidade jamais o convide para qualquer acto. A sua presença envergonha o sentido da Universitas, um saber plúrimo, cosmopolita e aberto ao mundo. A máscara vai caindo e mostrando o racista, xenófobo, oportunista e populista. Como escreveu o grande Lopes-Graça, “acordai!” todos quantos acham que este é o homem certo para resolver problemas que os partidos tradicionais não vêm conseguindo solucionar.

Conheço bem as dificuldades por que passa muita gente. Mas a solução nunca é, não pode ser, a intolerância, o ódio, o racismo, colocar uns contra os outros, demonstrar tanto desprezo pela dignidade humana, aquilo que de mais nobre e profundo todos temos. É também por isso que fico atónito com gente de direita católica, próxima do Opus Dei, que aceitou ser candidata pelas listas do Chega e que até ocupa posições destacadas na direcção do partido.

Somos todos Marega, mesmo que alguns “comentadores desportivos” ainda tenham tido a lata de dizer que o jogador “faltou ao respeito aos adeptos por não ter aguentado a pressão”. Gostava de os ver a serem continuamente insultados e tratados como animais, jogos após jogos. E o “catedrático do futebol”, Rui Santos, só demonstrou um cinismo a toda a prova.

Marega podia ser de qualquer clube. Isto podia ter acontecido em qualquer estádio do mundo, pois os energúmenos não são uma excentricidade lusa. Mas foi cá. E o silêncio é banalizar o mal, dizendo-o com Arendt. Não se pode calar o aviltamento do outro e muito mal andará a justiça desportiva e civil se não existirem processos justos e em tempo útil.

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