Tribunal australiano aceita buscas da polícia na redacção do canal ABC

Juíza do Tribunal Federal da Austrália diz que “não se pode prometer nem garantir anonimato a um informador”. Director da ABC diz que se trata de “uma tentativa de intimidar jornalistas por fazerem o seu trabalho”.

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Uma reportagem da ABC denunciou casos de mortes de homens desarmados e crianças no Afeganistão em operações das forças especiais australianas DR

O Tribunal Federal da Austrália considerou legais as buscas feitas pela polícia na redacção da televisão pública do país, a ABC, em Julho de 2019. A decisão, conhecida esta segunda-feira, foi criticada por organizações de jornalistas e de defesa da transparência no Governo como “um golpe na forma como os australianos têm acesso à informação na sua sociedade e na sua democracia”.

O caso avaliado pela juíza Wendy Abraham diz respeito apenas ao recurso da ABC contra a operação da polícia, mas faz parte de uma discussão mais alargada na Austrália sobre a falta de protecções legais a jornalistas e a fontes que denunciam excessos nas várias áreas do Governo.

No início do Verão do ano passado, a polícia federal australiana entrou na redacção da ABC com um mandado para procurar ficheiros relacionados com uma investigação dos jornalistas Dan Oakes e Sam Clark.

Dois anos antes, em Julho de 2017, Oakes e Clark publicaram uma grande reportagem na ABC sobre abusos das tropas especiais australianas no Afeganistão, acusadas de matar homens desarmados e crianças. A informação, contida em “centenas de páginas de documentos secretos”, foi obtida e entregue aos jornalistas por David William McBride, na altura advogado do Exército australiano.

Em tribunal, a ABC argumentou que as buscas não tiveram em conta nem a protecção de fontes nem o peso da função do jornalismo numa sociedade democrática. E foram ilegais porque, entre outras coisas, incluíram termos de pesquisa mais abrangentes do que o necessário. Por exemplo, os advogados da ABC dizem que os agentes da polícia usaram termos como “secreto” para pesquisar entre os ficheiros nos servidores e computadores da empresa – o que podia dar acesso a ficheiros sem relevância para a investigação da polícia.

Por causa da reportagem da ABC, David William McBride foi acusado de vários crimes e aguarda o início do julgamento, e os dois jornalistas podem ainda vir a ser alvo de acusações.

Fontes sem protecção

Na sua decisão, esta segunda-feira, a juíza Wendy Abraham disse que as buscas da polícia cumpriram as leis existentes no país, e que a queixa da ABC “eleva a protecção das fontes a uma posição que, no actual estado das leis, elas não têm”.

“Não se pode prometer nem garantir anonimato a um informador”, disse a juíza. E, apesar de não ter sido por isso que a ABC se queixou em tribunal, “decorre da lógica que é isso que está subjacente aos argumentos” do canal.

Num comunicado em que reage à decisão do tribunal, o director da ABC, David Anderson, diz que as buscas da polícia “foram uma tentativa de intimidar jornalistas por fazerem o seu trabalho”.

“Não estamos a dizer que os jornalistas devem estar acima da lei; estamos a dizer que o direito do público a saber a verdade deve ser um factor levado em conta – e o verdadeiro jornalismo não deve ser criminalizado”, disse o responsável.

Para além do caso da ABC, a Austrália discute também as buscas da polícia na habitação da jornalista Annika Smethurst, dos jornais da News Corp. Em 2018, a jornalista publicou uma notícia com base numa denúncia de que o Governo australiano tinha tentado usar espionagem generalizada contra os cidadãos do país. Tal como os jornalistas da ABC, também Smethurst aguarda uma decisão sobre se vai ter de enfrentar um processo em tribunal.

Os dois casos motivaram uma rara demonstração de união entre os maiores jornais australianos. Em Outubro, uma dezena de títulos saiu para as bancas com uma primeira página censurada, contra o que dizem ser a “cultura de secretismo” no país, resultado de duas décadas de alterações legais para criminalizar cada vez mais os casos de denúncias através dos jornalistas. Em 2018, o Governo australiano tornou crime a recepção, por jornalistas, de informações confidenciais obtidas por fontes nas Forças Armadas e nos serviços secretos.

“Não digo que só o actual Governo tenha culpa, mas temos assistido ao reforço de um ambiente autoritário nas relações entre o Governo e os media”, disse à BBC Catharine Lumby, professora de Media na Universidade Macquarie.

“A Austrália tem, de longe, as leis de secretismo mais pesadas de todas as democracias comparáveis no Ocidente – o Reino Unido, os Estados Unidos, o Canadá ou a Nova Zelândia”, disse o director da ABC.

Depois da decisão da juíza Wendy Abraham, a ABC pode recorrer para um painel de três juízes no mesmo Tribunal Federal da Austrália e, em último caso, para o Supremo Tribunal.

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