Os espectros do nazismo e do comunismo atormentam a Alemanha

Até há uma década os extremos políticos que hoje têm representação na AfD e no Die Linke estavam mais ou menos proscritos da política germânica. Mas a situação mudou substancialmente com os dois grandes partidos tradicionais em retrocesso.

1. A Turíngia, um pequeno estado da República Federal da Alemanha, é um dos 16 nder da federação com pouco mais de dois milhões de habitantes e capital em Erfurt. Recentemente, tornou-se o centro das atenções políticas germânicas e da Europa. Thomas Kemmerich do Freie Demokratische Partei / Partido Democrático Liberal (FDP), foi designado para chefiar o governo estadual da Turíngia com a ajuda da Alternative für Deutschland / Alternativa para a Alemanha (AfD).  Apesar de se ter demitido em seguida, abrindo caminho a novas eleições, o simbolismo do acontecimento é grande. Pela primeira vez na Alemanha do pós-guerra um político eleito para governar um Estado da federação foi indigitado para o cargo com o apoio de um partido populista ou de (extrema) direita. Até agora, o tradicional centro-direita conservador chefiado por Angela Merkel, a Christlich Demokratische Union Deutschlands / União Democrata-Cristã da Alemanha (CDU), sempre tinha recusado participar em qualquer coligação, ou solução governamental, com a AfD.

2. Mas a história desta transformação começa bem mais atrás. Nas eleições estaduais de Outubro de 2019 o Die Linke (A Esquerda) foi o partido mais votado na Turíngia seguido da AfD à (extrema) direita. Numa Alemanha habituada ao domínio de dois grandes partidos — ao centro-direita a CDU coligada com a CSU, os democratas-cristãos da Baviera; e ao centro-esquerda o SPD, o Sozialdemokratische Partei Deutschlands / Partido Social-Democrata da Alemanha — o resultado mostrou uma desagregação desse sistema bipartidário. Não foi um acaso isto ter ocorrido num território da antiga República Democrática Alemã (RDA), um Estado oficialmente comunista desde a sua fundação em 1949, até à sua extinção em 1990, por absorção pela antiga República Federal da Alemanha (RFA), criando a actual Alemanha unificada.

Aí, para além dos tormentos do passado nazi, da opressão totalitária com perseguição de opositores políticos pela Geheime Staatspolizei (a Gestapo) e execução em massa dos judeus, há ainda o espectro do muro de Berlim e do passado comunista. A antiga RDA não foi um modelo de respeito das liberdades individuais, da democracia e dos direitos humanos. Pelo contrário, à sua maneira deixou um rasto de opressão e de perseguições com memórias negativas ainda bem vivas entre muitos alemães.

3. Não é provavelmente um acaso que o Die Linke (a esquerda radical ou extrema-esquerda) e a AfD (a direita populista ou extrema-direita) sejam os partidos em ascensão na Turíngia. Anteriormente, em 2014, o Die Linke já tinha ganho as eleições e chegado ao poder nesse Estado. Mas qual a origem deste último partido? Se a AfD tem origens nos sectores mais nacionalistas e à (extrema) direita da Alemanha — tocando em conexões perigosas com o passado nazi e o seu totalitarismo — o partido Die Linke, por sua vez, é, de alguma forma, o ressurgir do passado do comunismo da RDA.

Até há uma década os extremos políticos que hoje têm representação na AfD e no Die Linke estavam mais ou menos proscritos da política germânica. Os seus eleitores ou não votavam, ou então diluíam tipicamente o seu voto na CDU (à direita) e no SPD (à esquerda), sem influenciar a agenda política. Mas a situação mudou substancialmente com os dois grandes partidos tradicionais em retrocesso.

Se a ascensão da AfD faz recear o pior dos anos 1930 — desde logo o colapso da República de Weimar provocado pelo Partido Nazi —, o Die Linke também não desperta memórias políticas tranquilizadoras. Pelo contrário, cria substanciais anticorpos na sociedade germânica até porque o seu passado, embora com outro tipo de opressão que não o da inqualificável barbárie nazi, é mais recente (e foi mais longo) do que o do nazismo. Para muitos alemães, sobretudo na parte Leste, é um reciclar do passado opressivo comunista da RDA onde o Sozialistische Einheitspartei Deutschlands / Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) era o partido único que controlava o Estado. A par disso, há as memórias de repressão da Stasi (abreviatura de Ministerium für Staatssicherheit / Ministério para a Segurança do Estado), uma polícia política orwelliana com centenas de milhares de funcionários e informantes infiltrados em todas as áreas da sociedade. Provavelmente, a mais eficaz da era das ditaduras não digitais.

4. A Alemanha, em particular a Alemanha de Leste, vive assim hoje o regresso dos fantasmas do nazismo e do comunismo, os quais tornam a pairar sobre a sua política e sociedade. A experiência política particular da Guerra-Fria e o grau de baixa prosperidade relativa do Leste, quando comparado com a parte ocidental, convergem para que as divisões entre as duas Alemanhas se perpetuem no tempo. Acresce ainda um longo passado anterior à unificação de 1871 que não se apagou também, o qual a divide o Norte e o Sul, católicos e protestantes, pró-prussianos e anti-prussianos. Estes últimos foram agentes maiores da unificação do século XIX, mas também da tragédia alemã e europeia, pelas catástrofes bélicas do século XX.

Quando se olha para os padrões de votação nas últimas eleições, sejam as efectuadas nos Länder ou as eleições federais, detectam-se essas diferentes realidades. Apesar do declínio claro dos dois grandes partidos, a parte ocidental ainda é dominada pela coligação CDU/CSU e pelo SPD (e Verdes). Nessa parte da Alemanha, quer a AfD, quer o partido Die Linke, apesar da sua ascensão, não têm um peso eleitoral particularmente significativo. Já no Leste da Alemanha, como mostra o caso da Turíngia, há uma tendência acentuada para os extremos políticos crescerem à custa dos dois grandes partidos tradicionais (que têm origem na política da Alemanha ocidental do pós-1945). Em teoria, a AfD e o Die Linke são os maiores inimigos, na prática, convergem mais do que parece. Cada um à sua maneira corrompe a imagem política de moderação e de consensos da Alemanha unificada na União Europeia.

5. Pelas razões explicitadas anteriormente, olhar para a Alemanha e ver apenas o declínio dos principais partidos e a ascensão da (extrema) direita não capta a totalidade da transformação social e política em curso. Como notado, continuam a existir duas Alemanhas políticas — e económicas e culturais. As votações mais elevadas na AfD e do partido Die Linke no Leste da Alemanha não deixam dúvidas quanto a isso.

Claro que isto traz problemas políticos sérios. A ascensão da (extrema) direita e o espectro dos anos 1930 é o problema melhor identificado e conhecido. Lembra-nos como as democracias se podem degradar até que o terreno seja propício a uma tomada autoritária do poder, como fez o Partido Nazi  em 1933. Mas não é só a (extrema) direita que faz renascer os espectros do(s) autoritarismo(s). Os dois extremos alimentem-se mutuamente. Para muitos alemães a esquerda radical ou (extrema) esquerda do Die Linke tenta também branquear o passado, agora não o do nazismo, mas o do comunismo. Qualifica eufemisticamente a RDA como tendo sido apenas um regime injusto.

Para além disso, vários membros do Die Linke não eram apenas simpatizantes do regime comunista anterior, ou membros do partido único, o SED. Vários casos têm vindo a público de ligações à Stasi — uma espécie versão alemã oriental da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) criada pelo Estado Novo de Salazar. A Alemanha está a ser novamente atormentada pelos espectros do passado nazi e comunista. Esperemos que continue a saber afastá-los, tal como fez exemplarmente a Alemanha Ocidental após 1945.

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