O triunfo dos ímpares

Custa-me perceber que, quando tanto se fala em “inclusão”, se cristalizam novos “cadeirões” e se voltam a enquistar feudos e coutos pelas escolas.

Há teses que, de forma recorrente, voltam à superfície por falta de melhores pensamentos. Acerca do evidente “mal-estar” ou “mau ambiente” que se vai espalhando por muitas salas de professores, reaparece a desnecessária e inútil teoria sobre uma guerra velhos/novos, em especial quando quase não há “novos” no corpo docente da generalidade das escolas. E porque alguns de meia-idade de hoje já estão mais velhos do que os “velhos” de outros tempos e há velhos que são tantas vezes bem mais jovens do que os mais novos. Há alguns anos levei à minha escola o mestre José Ruy (já na altura com mais de 80 anos) para fazer uma palestra sobre banda desenhada a alunos de 10-11 anos e, acreditem, não há idade limite para a capacidade comunicativa e pedagógica.

Outra tese sobre o evidente alastrar do desconforto entre os docentes, que tem algum fundamento mas que dificilmente se pode considerar como uma novidade, é que a avaliação do desempenho está a contaminar as relações no interior das escolas, agora que o descongelamento começou a revelar de forma mais clara as injustiças do “modelo” em vigor, nomeadamente do efeito perverso das quotas. Mas, como escrevi, desde 2008 se sabe que, mesmo com as sucessivas simplificações e adaptações, é um modelo de avaliação sem verdadeira capacidade para recompensar de forma justa o mérito, ficando muito vulnerável a políticas internas de distribuição de favores quanto às progressões.

Temos, nos tempos mais recentes, as questões relacionadas com a implementação das medidas de combate ao abandono e insucesso escolar e, em particular, da implementação de projectos apresentados como de “inovação pedagógica” e de “flexibilidade”. Estes planos têm produzido nos últimos anos mais uma onda de clivagens nas escolas, tendo testado a capacidade de muitos se adaptarem ao que se afirma como sendo as “pedagogias do século XXI” e os mais resistentes a aceitarem metodologias que, no fundo, se limitam a criar mais uma camada de registo burocrático e de reuniões para validarem práticas há muito conhecidas.

Assim como tem sido problemática a imposição da frequência de formações (para efeitos de progressão ou apenas de inculcação ideológica) que pouco ou nada trazem de novo para além de se apresentarem acções de propaganda política como se tratando de outra coisa. Mesmo em iniciativas de outro âmbito, ouvi nas últimas semanas pelo menos duas prelecções que pareciam decalcadas do mesmo molde que tem feito escola um pouco por todo o país e que só contribuem para azedar os espíritos, ao exigirem sempre mais aos docentes dando em troca umas palmadinhas nas costas ou uns títulos honoríficos para quem aceita replicar esse discurso nas escolas e fazer parte das equipas de “coordenação”. Porque a replicação do discurso oficial da “inovação” e da “diferenciação”, quando sustentada em práticas “clientelares” locais, tem criado divisões perfeitamente desnecessárias, pois em muitos casos apenas temos a opção por fazer marketing do que é rotina há décadas.

Acho que tudo o que fica escrito desajuda ao bem-estar docente, acrescendo ainda os reposicionamentos e ultrapassagens diversas que resultaram da desregulação dos concursos de docentes. Mas o que acaba por envolver todos estes factores que, por si só, seriam insuficientes para o tal “mau ambiente” é um modelo de gestão que deixa a maior parte dos professores excluídos dos processos de decisão, mesmo quando é feita uma encenação de “participação”.

Quando comecei a leccionar tive a sorte de não calhar em escolas “históricas”, em que certos “cadeirões” tinham titulares reservados e em que havia “professor@s” e os “outros”, leia-se, efectivos de velha cepa e contratados em trânsito. Onde mandavam pequenas cliques, mas que podiam ser substituídas, até porque existiam eleições a partir do 25 de Abril de 1974 para os órgãos de gestão e para as chamadas “lideranças intermédias”.

Custa-me perceber que, quando tanto se fala em “inclusão”, se cristalizam novos “cadeirões” e que se voltam a enquistar feudos e coutos pelas escolas, em que alguns decidem por todos e os mecanismos de “trabalho colaborativo” não passam de colocar correias de transmissão em engrenagens de sentido único. Fala-se muito em “cidadania” e de combate aos “populismos”, mas pratica-se muito pouco uma real responsabilização e muito menos a confiança. E quanto aos “cadeirões” há muitos que parecem tronos.

E, isso sim, envenena qualquer ambiente em que uns passaram a ser ímpares porque deixámos de ser pares.

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