Eutanásia na encruzilhada entre secularização e moral religiosa

A discussão sobre a eutanásia resume-se, por um lado, em colocá-la numa circunstância de eutanásia versus cuidados paliativos, sendo que não são soluções excludentes e, por outro, confundir direito à vida com obrigação de estar vivo. Neste assunto, é o debate entre moral religiosa e ética secular que traça as fronteiras.

O debate em torno da eutanásia reacende-se por estes dias, e com ele a sociedade portuguesa retorna à encruzilhada entre aquilo que se considera património moral da sociedade, que se toma por costume, por um conjunto de valores intemporais que invocam o princípio do Direito Natural, e os resultados da secularização da sociedade portuguesa e que trazem, nesses termos, uma doutrina positivista que compreende a sociedade por via das dinâmicas de transformação e ruturas mais ou menos abruptas. 

Não devem existir receios em mencionar que estamos em terreno ideológico. Ora, quando aludo a ideologia faço-o invocando a sua dimensão positiva, enquanto conjunto de valores, princípios e doutrinas que remetem a uma cosmovisão. Nesse sentido, todos os temas fraturantes dizem respeito a fronteiras ideológicas, ao colocarem diferentes interpretações éticas e políticas em confronto. 

Isto é evidente em sede de debate sobre a eutanásia. O ponto central do mesmo diz respeito ao confronto entre o monopólio da ética pública (e da moral, ao caso) por parte da religião e o processo de secularização social. Num país de património cultural judaico-cristão, onde cerca de 80% da população se diz católica, a Igreja Católica considera-se legitimada a influenciar os decursos da sociedade portuguesa, não apenas em matéria individual, respeitando aos declarados fiéis, mas de igual forma a toda a população, agindo, portanto, politicamente.

Ora, do lado dos que se opõem à eutanásia aparecem dois argumentos: a defesa do direito à vida e, com ela, a defesa da melhoria das condições nos cuidados paliativos. Sucede, todavia, que o direito à vida, sendo um valor constitucionalmente absoluto, não deve ser confundido com o dever da vida, isto é, com a obrigação de estar vivo. Nesse sentido, opera a assunção de que somente Deus dá e pode tirar a vida, substituindo-se a teologia do “livre-arbítrio” pela teologia da dádiva da vida. É, por essa razão, que o suicídio é considerado pecado, porque ao permitir ao ser humano a autodeterminação esvazia a Jurisprudência Divina.

No que tange aos cuidados paliativos, estes são apresentados como alternativa à eutanásia, não como uma escolha, mas antes como ato coercivo, ou seja, como uma imposição da sociedade sobre o sujeito, obrigando-o a estar vivo. Se retirarmos a dimensão económica da equação, isto é, se desconsiderarmos, para efeitos de debate no plano das ideias, que os cuidados paliativos são um negócio extremamente lucrativo, compreendemos que há um intento de se aplicar uma doutrina moral e religiosa sobre a vida ao conjunto dos cidadãos, queiram eles ser objeto dessa mesma doutrina – que adquire força de lei – quer não. 

Assim, se ao invés de se combater a eutanásia com cuidados paliativos, se optar por promover os mesmos como uma possibilidade de escolha, em que os cidadãos são (sublinhe-se) livres para no uso da sua autodeterminação escolherem entre a prática da eutanásia e qualitativos cuidados paliativos, estaremos a permitir que os valores seculares da Democracia sejam estendidos a todos os aspetos da sociedade. Ora, a secularização não nega a dimensão religiosa na vida dos sujeitos, mas antes permite que esta tenha um alcance tendencialmente a-político, reservando-se à opção de adoção ou rejeição dos sujeitos da moral religiosa (eventualmente de uma sobre todas as demais) enquanto cidadãos que não podem ser privados da sua liberdade e autodeterminação. Afinal, o direito à vida enquanto princípio constitucional absoluto não pode significar a obrigação de estar vivo, sem com isso se estar a violar o direito inalienável de decidir por e para si mesmo. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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