Compreender as causas da inquietação no MP e os aproveitamentos espúrios que dela são feitos

O que o novo Estatuto quis – e bem – foi que todas as intervenções hierárquicas tivessem expressão processual, dando total transparência à intervenção do MP enquanto autoridade judiciária e permitindo um processo mais leal e democrático.

Dada a inquietação que, a propósito de uma diretiva da PGR, se desenvolveu no seio do Ministério Público (MP), importa esclarecer alguns pontos. A melhor maneira de o fazer é procurar responder objetivamente a um conjunto de questões.

Pergunta (P): Mudou tal diretiva a prática mais corrente do MP?

Resposta (R): Não, para o bem ou para o mal, dependendo das opiniões, muitos eram os que assim entendiam e procediam.

P: Era tal prática questionada de um ponto de vista jurídico?

R: Sim. Alguns magistrados consideravam, já antes, que as ordens dos superiores hierárquicos dirigidas aos processos deviam ser neles necessariamente vertidas e agiam em conformidade.

P: Cada um fazia como entendia?

R: Sim. Nunca houve uma definição hierárquica de qual a prática a seguir.

P: Que tinham essas diferentes práticas a ver com a possibilidade legal da existência de tais ordens?

R: Nada. O que se discutia, então, era a necessidade de dar transparência à intervenção de todos e cada um dos magistrados do MP no processo e de, assim, se poder concretizar a outra característica constitucional desta magistratura – a responsabilidade dos seus membros pelos atos que pratiquem.

P: O que há então de novo e que motivou o recente alvoroço?

R:  Uma norma do novo Estatuto do MP que refere que “A intervenção hierárquica em processos de natureza criminal é regulada pela lei processual penal”. Esta norma parece dizer que, quando dirigidas a processos concretos de natureza penal, só as intervenções hierárquicas previstas no Código de Processo Penal (CPP) são hoje possíveis e válidas.

P: Quer isto dizer que no atual CPP não se preveem as intervenções hierárquicas referidas na diretiva?

R: Simplificando, o CPP prevê apenas, no seu artigo 278.º, que “no prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa (…), determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento”. Parece, assim, não estar contemplada, entre outras, a possibilidade de o superior hierárquico imediato do titular do processo indicar, no decurso do inquérito, diligências a realizar, ou a não realizar.

P: Foi isso que a nova norma do Estatuto do MP quis; reduzir as possibilidades de intervenção hierárquica no processo penal no decurso do inquérito?

R:  O que ela verdadeiramente quis – e bem – foi que todas as intervenções hierárquicas tivessem definição e expressão processual, como acontece com as que no CPP estão já previstas, dando, assim, total transparência à intervenção do MP enquanto autoridade judiciária e permitindo um processo mais leal e democrático.

P: Como resolver então a questão?

R: Completando, quanto antes, o processo legislativo sobre a matéria. Isto significa alterar aquela norma processual, pois, quando foi redigida, vigorava outro estatuto do MP que, como disse, consentia uma leitura mais ampla no que respeita ao âmbito das intervenções hierárquicas e à sua sede. Não faz, na verdade, sentido que, podendo o superior hierárquico mandar reabrir e refazer um inquérito no seu final, não possa intervir, útil e tempestivamente e com regras definidas, no decurso do mesmo para corrigir oportunamente o que o deva ser.

P: Mas, afinal, a referida diretiva, ou uma tal proposta de alteração do CPP, põem em causa a autonomia do MP?

R: Não. Todos os magistrados do MP, independentemente do seu escalão, estão sujeitos às mesmas regras de isenção e objetividade e podem, e devem mesmo, recusar ordens ilegais, podendo ainda objetar as que violem a sua consciência jurídica. E sempre assim aconteceu e pode continuar a acontecer. Não consta, também, que magistrados dos escalões inferiores gozem de uma especial presunção de “isenção” relativamente aos dos escalões superiores.

P: Qual então o motivo da inquietação?

R: A divergência genuína de uns com a interpretação jurídica vertida na diretiva face à invocada norma do novo Estatuto e a vontade subjacente de uns quantos de sedimentar uma leitura diferente da dimensão constitucional hierárquica do MP.

P: Mas isso é necessariamente mau?

R:  A verdade é que, sem uma alteração do CPP, o MP passaria a ser o único interveniente no processo que não vê discriminadamente reguladas na lei processual as regras e os limites reais da intervenção de cada um dos seus membros, designadamente as que se referem à sindicância dos seus atos. Isto, num momento em que, precisamente, a jurisprudência dos Tribunais da Relação vem referindo que esse controlo deve ser feito no inquérito, não pelo juiz, mas no seio do próprio MP.

P: E?

R: Um tal estatuto de insindicabilidade processual nem os juízes têm, pois as suas decisões estão, em geral, sujeitas a recurso e podem ser revogadas e alteradas por um tribunal superior; e isso não afeta a sua independência.

P: Quais as consequências políticas do arrastar desta situação?

R: O reforço daqueles que sempre disseram que o MP anda “à vara larga”, pretendendo com isso alterar o seu estatuto constitucional e subordiná-lo a um controlo político externo que, esse sim, esvaziaria a sua autonomia e o dissociaria das exigências europeias sobre a independência e autonomia desta magistratura.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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