Como libertar o Orçamento do calendário eleitoral? Juristas apontam três cenários

O Presidente da República sugeriu que se alterasse a data das eleições legislativas para que os Orçamentos do Estado entrassem em vigor sempre a 1 de Janeiro, mas não se comprometeu com soluções jurídicas. Há várias hipóteses, dizem constitucionalistas.

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O Presidente constitucionalista preferiu não avançar com uma solução jurídica própria LUSA/RUI MANUEL FARINHA

O Presidente da República gostaria que os Orçamentos do Estado (OE) entrassem plenamente em vigor, todos os anos, no dia 1 de Janeiro. Para isso, sugeriu que se antecipe o calendário eleitoral das eleições legislativas para Maio ou Junho, de forma a que, sempre que haja um novo Governo, a discussão e entrada em vigor do OE para o ano seguinte não escorregue para o ano em que já devia ser aplicado em pleno, como vai acontecer em 2020.

“Com eleições em Outubro, nunca haverá Orçamento antes de Fevereiro, Março. Há quatro anos foi em final de Março, não sei se chegou a ser em Abril, e o decreto-lei de execução orçamental entra em vigor três meses depois. Portanto, não é possível executar o Orçamento praticamente até dois terços do ano, ou mais de metade do ano”, sustentou Marcelo Rebelo de Sousa na semana passada. “Um dia mais tarde, os partidos terão de pensar nisso. Não sei se é preciso mudar a Constituição, se é preciso só mudar a lei”, disse ainda. A ideia já foi apoiada por PS, PSD, CDS e PAN, partidos suficientes para alterar quer a lei eleitoral, quer a própria Constituição.

Mas será a antecipação das eleições legislativas para antes do Verão a única forma de evitar deslizes na entrada em vigor dos Orçamentos? E será que essa antecipação exige uma revisão constitucional? Quatro constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO apresentam diferentes soluções – e dividem-se nas opiniões.

1. Alterar apenas a Lei Eleitoral

Jorge Reis Novais considera que não é preciso alterar a Constituição para se anteciparem as eleições alguns meses, como pediu o Presidente da República. Na opinião deste constitucionalista, que foi assessor jurídico de Jorge Sampaio em Belém, basta alterar a lei eleitoral: em vez de prever que as eleições se realizam entre 14 de Setembro e 14 de Outubro, elas teriam lugar antes das férias de Verão – em Maio ou Junho, como sugeriu Marcelo Rebelo de Sousa -, mas os deputados então eleitos só tomariam posse em 15 de Setembro, data de inicio da sessão legislativa definida na Constituição da República Portuguesa.

“Essa é mesmo a única forma de respeitar a Constituição e fazer com que a legislatura comece na data que está constitucionalmente definida para o início das sessões legislativas, que é 15 de Setembro”, defende Reis Novais. Na sua opinião, o calendário eleitoral definido em 1999 “foi uma má opção, cujo único objectivo foi não haver eleições em período de férias”.

Por outro lado, não vê problema nenhum em que os deputados sejam eleitos em Junho e só tomem posse em Setembro: “É também o que acontece com o Presidente da República: é eleito em Janeiro mas só toma posse em Março”. Para Reis Novais, o que não faz sentido é fazer uma revisão constitucional por causa deste assunto.

Tiago Duarte, professor da Universidade Católica, considera que se trata de uma questão de “filigrana constitucional”. “Se se alterasse a lei eleitoral para fazer as legislativas mais cedo, mas sem mudar a Constituição, os deputados tomariam posse a 15 de Setembro, mas poderia não haver governo até 30 de Setembro”, diz.

Por isso, não seria cumprida a Lei de Enquadramento Orçamental, que prevê que a apresentação do Orçamento do Estado a 1 de Outubro. Embora houvesse tempo, em teoria, para aprovação do OE antes do final do ano civil, como pede o Presidente da República, o ganho temporal não seria significativo face à lei actual.

Daí que Tiago Duarte defenda que, para se ganhar mais tempo, seria necessário que a Assembleia da República tomasse posse mais cedo. Nesse caso, já seria obrigatória uma alteração da Constituição, de forma a que a legislatura começasse efectivamente mais cedo. Em Junho, por exemplo.

2. Revisão constitucional obrigatória

Conhecido como um dos “pais” da Lei Fundamental, Jorge Miranda é peremptório: para mudar o calendário eleitoral é necessária uma revisão constitucional. “A Constituição prevê que a legislatura tenha quatro sessões legislativas e que cada sessão comece a 15 de Setembro. Antecipar as legislativas para Maio ou Junho não cumpre a Constituição e levaria a que houvesse duas assembleias, uma em funções e outra eleita mas que não poderia funcionar, o que é absurdo”, afirma Jorge Miranda.

Além disso, entende que seria inconstitucional fazer uma alteração à lei eleitoral que cortasse uma legislatura em três meses. Para que houvesse uma interrupção do prazo normal de uma legislatura, era necessária a dissolução do parlamento pelo Presidente da República, algo que Marcelo já descartou completamente. “Um disparate”, terá dito Marcelo em Belém, segundo o Observador.

Na opinião de Jorge Miranda, “não vem mal nenhum ao mundo” que o OE entre em vigor dois ou três meses mais tarde. “Paciência! O que é preciso é começar a trabalhar mais cedo e não perder tempo em debates estéreis”, defende.

3. Alteração da Lei de Enquadramento Orçamental

Bacelar Gouveia concorda com a antecipação das eleições para Maio ou Junho, à semelhança do sistema britânico, porque a realização de eleições entre 14 de Setembro e 14 de Outubro, tal como está previsto na lei eleitoral, “é a mãe de todos os problemas”.

O professor da Universidade Nova de Lisboa admite uma terceira solução: a alteração da Lei de Enquadramento Orçamental de maneira a que o OE seja apresentado logo em Junho, e não em Outubro. “Se os governos já têm de apresentar a Bruxelas as Grandes Opções do Plano e o Plano de Estabilidade até 15 de Abril, poderiam também antecipar a apresentação do Orçamento do Estado”, considera. Depois, caso fosse eleito um governo diferente, “só tinha de apresentar uma alteração à lei de execução orçamental ou, no limite, um Orçamento Rectificativo.

Sendo uma solução possível, não seria a mais desejável, na medida em que antecipava demasiado as perspectivas económicas do ano seguinte. Por isso considera que “a única forma de resolver o problema de raiz é mesmo mudar a Constituição”.

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