Eutanásia: a carne é minha, a decisão é minha

Nos trâmites portugueses actuais, só os ricos podem ter acesso a uma morte digna nos seus próprios termos.

Durante a discussão do Orçamento de Estado para 2020, na Assembleia da República, a deputada Cecília Meireles, do CDS, teve um comentário muito pertinente dirigido a André Silva, do grupo parlamentar do PAN: “O senhor arrogar-se como juiz de estilos de vida alheios, querendo impor a todos aquilo que vêem, a maneira como viajam e até aquilo que comem. O senhor deputado tem todo o direito de não gostar de carne, não comer carne, ser vegan, vegetariano ou o que entender, mas não tem o direito de vir para aqui fazer juízos éticos e morais sobre o que cada um come. Com franqueza! Tenha limites. Viva a sua vida como entender, agora não nos venha impor o seu estilo de vida”. 

É louvável que uma deputada do CDS defenda que não devemos dizer aos outros como viver a sua vida — e, igualmente importante, se devem ou não morrer nos seus próprios termos —, quando é o CDS o partido mais moralista e antagónico em relação à liberdade individual dos cidadãos. Um dos exemplos mais flagrantes desse moralismo é a posição sobre a eutanásia, sobre a qual têm grassado alguns ecos no mínimo alarmistas sobre a grandiosa tragédia que seria a legalização da prática, que vai ao Parlamento no próximo dia 20. 

Esses ecos assentam, normalmente, na ideia de que o Estado é um malfeitor que virá para nos matar se estivermos em estado terminal. Nada mais errado: o fundamento mais básico da eutanásia é que terá de ser, sempre e sem excepção, o próprio a solicitar o seu fim de vida, e isso apenas lhe será concedido se estiver em estado terminal. É a entrega da decisão a quem é implicado: se a decisão for ficar vivo e experienciar a dor até ao último momento, a decisão é legítima e será respeitada; se a decisão for uma súplica para que médicos cessem o sofrimento, a decisão é legítima e também será respeitada. A eutanásia nunca nos será imposta: será apenas uma alternativa. Se quiseres, tens essa hipótese. Se não quiseres, ninguém te obrigará. 

Um dos artigos de opinião que têm sido recuperados é o de Inês Teotónio Pereira, que pede que, mesmo que esteja em sofrimento, a abracem e não lhe provoquem a morte. Está no seu direito, e a sua vontade será sempre respeitada. O que não podemos aceitar é que o abraço pedido por Inês Teotónio Pereira seja uma panaceia para toda a gente. Por isso, que fique escrito: se eu estiver terminal e em sofrimento, dêem um alívio à minha família, que prefiro que não me veja em agonia nem fique para sempre com essa última imagem de mim, e a mim mesmo, e matem-me. A carne é minha, a decisão também deve ser minha. 

Outro dos argumentos comummente dados é o de que a morte será banalizada se a eutanásia for aprovada. Completo disparate. Ninguém banaliza a sua própria morte, e mesmo que o faça, está no seu direito: a carne é minha, a decisão é minha. Mas a banalização é uma falácia: ninguém pedirá, de ânimo leve, para morrer. Existe, todavia, uma questão que não pode ser descurada: há estudos que revelam que, no auge do sofrimento, os pedidos podem ser feitos por desespero e sem a ponderação que deveria ser, idealmente, fundamental.

Por isso, nesse campo, o trabalho é outro: pensar frequentemente sobre a nossa própria morte e conversar sobre ela com os nossos entes queridos — e, quiçá, também com outros não tão queridos. Precisamos de encontrar mecanismos para que a morte deixe de ser um tabu e para que falemos dela com alguma naturalidade e a aceitemos com a dose possível de tranquilidade. Há um outro argumento forte contra a eutanásia, e também teríamos de conversar à séria sobre ele: quando pedimos que nos possibilitem a nossa própria morte, estamos a implicar terceiros, e isso pode ser moralmente dúbio. Ainda assim, creio que essa implicação é benéfica e nunca poderá ser vista como homicida. É um veículo para a dignidade. 

A paz possível
Não nos iludamos: a morte é uma merda. Será sempre uma merda termos de chorar aqueles que amamos, será sempre uma merda receber a notícia de que o cancro tem elevado potencial de nos tirar uma mãe ou uma avó. Mas devíamos largar as amarras da religião e do conservadorismo e minimizar da melhor forma possível a merda que é a morte.

Porque, ao contrário do que nos dizem os sonhos dignos da Disney, a morte pacífica não é uma coisa assim tão habitual. Em muitos casos, é uma derivação entre estados semi-conscientes, é haver descontrolo das funções fecais, é haver gritos desesperantes de dor, é haver expectoração da cor de alcatrão. Sejamos honestos: preferimos ver a nossa própria mãe num cenário destes a clamar pela sua morte (que, relembro, será inevitável e acontecerá muito em breve) ou queremos mantê-la neste estado, que não é humano nem é nada que se lhe compare, apenas porque o Estado assim no-lo obriga? A eutanásia, para muitos de nós, traz a paz possível. Mas, em paralelo, também temos de estar em paz com a ideia da morte. 

Despenalizar a eutanásia colocaria Portugal, mais uma vez, em posição de destaque mundial. Já fomos progressistas ao ser o primeiro (ou um dos primeiros, não é historicamente consensual) a abolir a escravatura e somos um exemplo global no modo como despenalizámos o consumo de droga, e é habitual sermos enaltecidos por isso. Se a despenalização for aprovada, seguiremos a peugada da Holanda, Suíça, Bélgica, Colômbia, Luxemburgo, Canadá, algumas partes da Austrália e alguns Estados dos EUA. Além do mais, manter a proibição da eutanásia não impede que portugueses optem por este método. Há quem já o faça, há alguns testemunhos neste livro, mas só é possível com uma despesa considerável. Ou seja, traduzido por miúdos, nos trâmites portugueses actuais, só os ricos podem ter acesso a uma morte digna nos seus próprios termos. 

Quanto a nós, os cidadãos, temos a obrigação moral de pensar mais sobre a nossa própria morte, de conversar mais sobre ela, e de ir revisitando potenciais situações-limite em que teremos de ser confrontados com a pergunta fatal: como preferes morrer? E aceitar que não há uma resposta certa, todas são legítimas e não podemos impôr um único caminho. Mas devemos facilitar a hipótese de escolha.

Queridos e honrosos deputados, no próximo dia 20, votem em consciência, pela nossa liberdade e pelo nosso direito de escolha — pelo nosso, mas também pelo vosso. A morte é íntima e diz respeito ao indivíduo, não é comunitária nem estatal. 

Sugerir correcção
Ler 33 comentários