Em ano de centenário, passado e futuro contracenam no Teatro Nacional São João

Comemorações dos cem anos do edifício de Marques da Silva arrancam no dia 7 de Março com o regresso de Turismo Infinito e a projecção da nova encenação da Castro de António Ferreira na Praça da Batalha. Um dos momentos imperdíveis da programação até Julho será uma encenação de Frank Castorf a partir de Racine e Artaud.

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Bajazet, considerando o Teatro e a Peste, encenação de Frank Castorf Mathilda Olmi
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Turismo Infinito, encenação de Ricardo Pais João Tuna
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Castro, encenação de Nuno Cardoso João Tuna
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O elenco "quase residente" do TNSJ Susana Neves
Teatro Nacional de São João
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Edifício de Marques da Silva vai entrar em obras em 2021 Nelson Garrido

O regresso de um dos mais inesquecíveis espectáculos de Ricardo Pais, Turismo Infinito, e a estreia de Castro, uma nova encenação da tragédia de António Ferreira pelo director artístico do Teatro Nacional São João (TNSJ), Nuno Cardoso, marcam o arranque da programação do teatro nacional portuense neste ano em que se comemora o centenário do seu edifício, projectado por Marques da Silva.

Bazajet, considerando o Teatro e a Peste, uma encenação e adaptação de textos de Racine e Artaud por um dos mais influentes e revolucionários encenadores da actualidade, o alemão Frank Castorf, histórico director artístico da Volksbühne, promete ser um dos pontos altos do calendário de espectáculos para os meses de Março a Julho, divulgado esta terça-feira numa conferência de imprensa que serviu ainda para anunciar um extenso programa de reabilitação, modernização e reequipamento do teatro, orçado em cerca de dois milhões de euros, bem como a contratação de um núcleo de seis actores, que o presidente da administração, Pedro Sobrado, descreveu como “uma companhia quase residente”.

Devastado por um incêndio em 1908, o antigo Real Teatro de São João, que fora fundado ainda no final do século XVIII, deu lugar ao actual edifício que veio a ser inaugurado no dia 7 de Março de 1920. E se as comemorações deste centenário se prolongarão até Março do próximo ano – prevê-se que encerrem com um ambicioso colóquio internacional dedicado ao tema dos teatros nacionais –, o TNSJ quis assinalar o próximo dia 7 de Março com particular intensidade. Durante a manhã e a tarde estão previstas várias iniciativas de entrada gratuita para públicos diversos, quer no São João, quer nos outros dois espaços que a instituição gere: o Teatro Carlos Alberto (TeCA) e o Mosteiro de S. Bento da Vitória. E também ao ar livre: na Praça da Batalha, pelas 16h, irá ser possível assistir à projecção da Castro, que por essa mesma hora estará a ser apresentada no Teatro Aveirense, onde se estreará dois dias antes.

Se a opção de estrear a primeira produção própria de 2020 em Aveiro tem um óbvio carácter simbólico, sublinhando que o TNSJ é um teatro nacional e se assume, salientou Sobrado, “como ferramenta da política de descentralização cultural do Estado”, a Castro, na sua versão KastroKriola, ilustra também os resultados da frutuosa cooperação que vem sendo desenvolvida com Cabo Verde. Já nas próximas semanas, o teatro do Porto receberá oito actores e três técnicos cabo-verdianos, e ainda o dramaturgo Caplan Neves, que reinventou a Castro em crioulo, e toda a equipa ficará em residência a preparar esta versão cabo-verdiana da tragédia de António Ferreira, que terá encenação, cenografia e figurinos de Nuno Cardoso. Castro ficará no TNSJ de 27 de Março a 18 de Abril, e KastroKriola tem estreia marcada a 25 de Abril.

Não menos simbólica foi a escolha de terminar a festa do dia 7 de Março com o regresso de Turismo Infinito ao palco do TNSJ, onde se estreara, em 2007, esta deslumbrante incursão de Ricardo Pais pela floresta textual pessoana. Um modo de a casa mostrar “o grande passado que tem pela frente”, para citar uma expressão usada por Pedro Sobrado na conversa com os jornalistas.

O Olhar de Ulisses

Este ano de centenário ficará também marcado pelo retorno de uma programação regular de grandes espectáculos internacionais, agrupados num ciclo que se estenderá ao longo da temporada, O Olhar de Ulisses, e que trará, além da já referida encenação de Castorf, The Lingering Now, da brasileira Christiane Jatahy, The Scarlet Letter, da espanhola Angelica Liddell, ou Artaud, do argentino Sergio Boris, um momento onde este ciclo se cruza com o FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica).

São aliás vários os espectáculos agora anunciados que integram os festivais da cidade, como o FITEI ou o Dias da Dança. E a par do seu contributo para estas iniciativas externas, a programação inclui também um bom número de co-produções, incluindo um conjunto de três espectáculos com A Turma, uma colaboração com a Palmilha Dentada – O Burguês Fidalgo, de Molière –, A.N.T.Í.G.O.N.A., com o Teatro Experimental do Porto, ou a peça Lorenzaccio, de Alfred de Musset, encenada por Rogério de Carvalho e co-produzida com o Teatro do Bolhão. E sem esgotar os muitos espectáculos previstos, uma última menção a Este É o Meu Corpo, um quarteto de “lancinantes solos” (a expressão é de Nuno Cardoso) que Monica Calle levará em Junho e Julho ao Mosteiro de S. Bento da Vitória.

O programa para os próximos meses foi apresentado por Nuno Cardoso, que iniciou a sua intervenção regressando a uma recém-descoberta fotografia histórica que fora projectada no início da sessão, uma imagem do Teatro S. João em 1912, ainda em construção e sem tecto, para assumir metaforicamente essa obra aberta e inacabada como metáfora do teatro que o TNSJ quer continuar a ser. Cardoso elogiou ainda “a sobriedade e honestidade feliz e entusiasmante” de Sobrado, cuja intervenção inicial bem poderia, de facto, ter sido gravada em vídeo para benefício de outros administradores de instituições culturais públicas. Não é muito frequente vermos o administrador de um teatro a apresentar números claros e fidedignos – respeitantes a espectáculos, digressões, projectos educativos, ou ao próprio orçamento de que dispõe – para depois explicar como faria se quisesse manipulá-los para cima ou para baixo.

Manifestando a sua satisfação por ter sido possível contratar, para já por um ano, a referida “companhia quase residente” – constituída pelos actores Afonso Santos, Joana Carvalho, João Melo, Maria Leite, Mário Santos e Rodrigo Santos –, Sobrado centrou-se na bem-sucedida candidatura ao programa Norte 2020, que permitirá investir cerca de 2 milhões de euros, comparticipados a 85% por fundos comunitários, na renovação e apetrechamento técnico do edifício (que encerrará para obras entre Abril e Setembro de 2021), restando ainda 350 mil euros para programação dos espectáculos do ciclo O Olhar de Ulisses, para uma grande exposição que mostrará a pouco conhecida história do S. João, para o já referido colóquio internacional, e ainda para seis edições dos Cadernos do Centenário, cujo número inaugural reunirá uma centena de testemunhos de espectadores da casa acerca de um espectáculo que os tenha tocado particularmente. “Já temos 99, só falta o do Nuno Cardoso”, precisou Sobrado.

Respondendo a uma questão da imprensa acerca do aparente favorecimento relativo do Teatro Nacional D. Maria II, por contraste com o São João, nas transferências financeiras do Ministério da Cultura, o administrador reconheceu a discrepância, mas sublinhou que “não é de agora” e mostrou-se convencido de que “será corrigida futuramente”. E observando que “as responsabilidades dos dois teatros nacionais, do ponto de vista programático, artístico ou patrimonial, não são substancialmente distintas”, concluiu: “Se me é permitido dizê-lo humoradamente, o orçamento para o D. Maria II está certíssimo e é inteiramente justificado e o orçamento para o São João está razoavelmente certo”.

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