Eu sou português!

Acima de tudo, André Ventura manifesta uma postura política oportunista que não devia deixar ninguém sossegado, sobretudo aqueles que hoje se sentem protegidos por ele. Da mesma forma que lhe convém instrumentalizar a opinião popular contra as minorias raciais pode-lhe interessar fazer o mesmo contra “Alentejanos”, “Minhotos”, “comunistas”, “Portugueses na diáspora”.

É uma sensação estranha emitir uma opinião algo divergente sobre um assunto que constitui uma espécie de standard para vários amigos com os quais estou plenamente de acordo. Corro, com isso, o risco não só de comprometer o excelente trabalho cívico de consciencialização que eles fazem, como também de parecer dar alento a pessoas que me parecem pôr em causa os fundamentos éticos que viabilizam a democracia portuguesa. Mas é assim, eu acho que no fundo somos todos racistas. Há racistas bons, nós portanto, e racistas maus, os outros. Nós, os bons, reconhecemos tacitamente a validade da categoria racial pela forma como a usamos para exigir que a existência de humanos mais escuros que outros não constitua razão, nem justificação, para que sejam tratados de forma injusta. Os maus, pelo contrário, partem do princípio de que essa existência constitui razão mais do que suficiente para que o tratamento seja diferente.

Nós, os bons, vivemos um paradoxo doloroso que consiste em reafirmar justamente o que queremos fazer desaparecer da cabeça das pessoas como forma de, um dia, prescindirmos dessa coisa em prol duma vida decente. A resistência que os maus opõem tranca-nos nesse paradoxo e faz de nós reféns do nosso apurado sentido de civismo. Quanto mais insistimos em apelidar os maus de (mais) racistas, mais perdemos o controlo sobre a narrativa porque eles podem, sem vergonha na cara, usar o nosso ponto de partida, que consiste na ideia de que do ponto de vista biológico a ideia de raça não faz absolutamente nenhum sentido, para nos dizerem que “somos todos humanos”. Nós sabemos, e eles também sabem, que todos sabemos que eles sabem que estão a perverter o sentido do que nós dizemos. A nossa preocupação é com a justificação do trato diferenciado, enquanto a deles é com a melhor maneira de ocultar a vileza cívica da sua postura.

É essencialmente a mesma coisa quando uma pessoa de pele clara, e normalmente sensata, reage ao nosso discurso anti-racista com recurso à ideia de que ela também seria vítima de racismo em África ou em meios dominados por pessoas de pele escura. Essa pessoa também sabe que nós sabemos que ela sabe que todos sabemos que não estamos a falar da mesma coisa. Ela refere-se ao tratamento que recebe dos escuros, muitas vezes em circunstâncias em que essa pessoa foi colocada no lugar onde se encontra por toda uma estrutura histórica de privilégios, a qual, por vezes, reduz drasticamente o mérito que essa pessoa possa ter tido para alcançar essa posição. A pessoa de pele clara não tem culpa por ter beneficiado disso – e há também pessoas de pele clara que pouco benefício tiram duma história viciada a seu favor –, mas o argumento dos racistas bons é justamente esse. Nós não temos nenhuma obsessão especial com a “raça”. Nós insurgimo-nos contra as condições estruturais que ditam a sorte de alguns por conta da instrumentalização ideológica de aparentes diferenças.

O que acontece aqui, na verdade, é que somos todos vítimas dum processo de racialização, daí a importância do conceito “sujeitos racializados” empregue por alguns. O que essa racialização faz não é necessariamente reafirmar a raça, mas sim usá-la para perverter a nossa humanidade que é real. Portanto, a nossa luta não é necessariamente contra quem acha que a existência de diferenças raciais justifica que os mais escuros ou os mais claros sejam tratados de forma diferente, mas sim contra quem acha que essa diferenciação seria compatível com o sentido de humanidade que a ordem política portuguesa promove e protege. Dito doutro modo, nós somos os defensores do que de mais nobre existe nesta ordem política e estamos perante os seus inimigos. Os “portugueses” somos nós, não eles. 

Quando um deputado diz que uma colega deputada devia regressar “às origens”, ele não está apenas a ser (mau) racista. Ele está a revelar a distância que o separa dos valores democráticos (assim como, pelo recurso à falácia do ataque à pessoa, a incapacidade de discutir) e, acima de tudo, ele manifesta uma postura política oportunista que não devia deixar ninguém sossegado, sobretudo aqueles que hoje se sentem protegidos por esse deputado. Da mesma forma que hoje convém ao deputado instrumentalizar a opinião popular contra as minorias raciais, vai-lhe interessar (potencialmente), um dia, fazer o mesmo recurso contra “Alentejanos”, “Minhotos”, “comunistas”, “Portugueses na diáspora”, etc. Essa é a história da demagogia por todo o lado. É, para usar uma imagem empregue uma vez por um Presidente americano, como urinar nas próprias calças. Num primeiro momento é bem quentinho, mas depois esfria e incomoda. 

Há aqui um problema intelectual bicudo. Nós, os bons racistas, somos intelectualmente profundos. O “sujeito racializado” para nós é uma metáfora dolorosa sobre o que ainda falta fazer para que o fundamento normativo que dá substância à ordem política portuguesa entre em sintonia consigo próprio. O mau racista, esse, não tem imaginação. Toma as coisas ao pé da letra e faz uso da “raça” para articular todos os preconceitos que o desqualificam como membro da sociedade política por a ela ser nocivo. Curiosamente, não é por causa dele e de gente da sua laia que Portugal é, apesar de tudo, aquilo que o país de bom tem, mas sim apesar dele e de gente da sua laia. Quando insistimos em chamar a esta gente de racista proporcionamos a ela uma excelente cobertura para ocultar o seu ténue compromisso com a humanidade. 

Então, um agente policial ou de segurança maltrata um afro-descendente e nós reagimos dizendo que ele é racista. Tudo bem. Mas antes de ser racista é um mau agente policial, é um brutamontes, é, nos termos de algumas leis, um criminoso. E se ele diz que age assim porque os “negros” merecem, então ele é pior do que isso. É um imbecil. Não existe nenhum sistema moral que sancione a brutalidade contra aquele que é tido como sendo diferente e continue incólume do ponto de vista ético. Esse sistema desumaniza-se automaticamente. E os bons racistas são pela humanização. Na verdade, não há bons racistas e maus racistas. Há pessoas com sentido cívico apurado, portanto, portugueses de verdade. E há pessoas que não aceitam os valores que definem Portugal, portanto, súbditos das suas paixões. São imbecis. Não sabem quão grande é a humanidade. Porque acredito que Portugal é, pelo fundamento normativo posto a descoberto por todos aqueles que lutam contra a racialização, a humanidade, sou também português. Bom, até certo ponto! 

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