Viver um dia de cada vez

Chamam-lhe rat race: milhares de milhões de ratinhos de capacete vermelho no labirinto sem fim da vida a correr a bom correr uns contra os outros sem nunca chegar a lado algum. Para quê? Para de repente abrir a porta e entrarem 40 anos casa adentro.

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Parecia impossível. Viver um dia de cada vez? Mas se estou em dívida para com todos? Estão todos à minha espera. Estou a vê-los, o meu pai, a minha mãe, os meus avós, os meus amigos, que também são a minha família, tu, à minha espera, a acreditar em mim, mas sem acreditar, a exigir. Toda a gente a exigir, a pedir e a pedir mais, tenho de lhes mostrar, tinha de lhes mostrar, tiveram sempre tão grandes expectativas e eu nada, sempre a prometer, a prometer tudo e no fim nada. 

Ou assim pensava. Tinha 10, 20, 30 anos e a cabeça dez anos à frente, sem nunca pensar no aqui e no agora mas no amanhã. A ansiedade a trepar, a tomar conta do corpo antes de cada teste na escola, antes de cada avaliação, os exames na universidade, fui sempre bom a estudar e por isso estudava, não fazia mais nada, estudava, não saía à noite, estudava, e quando saía à noite estudava a dobrar.

O tapete à volta da mesa gasto, pensava melhor a andar, memorizava melhor a andar, quilómetros nos pés, ainda mais na cabeça, memorizava mas não compreendia, só compreendia esta necessidade de estudar, a pressão, o sonho constante de um dia corresponder aos sonhos dos outros e a cabeça na lua sem nunca chegar lá. À lua, entenda-se. 

E enquanto se chega e não se chega, correr, sempre a correr, acabar o curso, deixar de estudar, começar a trabalhar, sem olhar, sem reparar, sem respirar, sem dormir, comer, rir, amar, beijar, abraçar, sem jogar à bola, sem ir à praia, sem ver o sol ou os anos a passar, as primeiras rugas, os cabelos brancos, para quê? Para de repente abrir a porta e entrarem 40 anos casa adentro. 

Aqui por estas bandas chamam-lhe rat race: milhares de milhões de ratinhos de capacete vermelho no labirinto sem fim da vida a correr a bom correr uns contra os outros sem nunca chegar a lado algum. Mas sempre a correr, com as patinhas no volante e os pés perdidos nos pedais enquanto o tempo foge no retrovisor. Para não voltar. A malta nem respira. Só sustém o fôlego: já acabaste o curso, já arranjaste emprego, já te casaste, já compraste casa, e se eu não quiser comprar casa, e se eu quiser viver na rua? O desgosto dos teus pais, a chacota no café da esquina.

Não vimos os nossos filhos crescer. Nem sequer tivemos tempo de os fazer! Crescemos nesta culpa de quem procura justificar a existência aos outros, este lugar ao sol que nunca há-de ser nosso, mesmo que seja, mesmo que tenhamos trabalhado para isso, estudado para isso, e como não é nosso por certo vai chegar ao fim, é alugado, tem dono, não vai durar para sempre, há-de vir uma nuvem e a chuva, não o merecemos, o sol é de outra pessoa e alguém virá para o reclamar.

E por isso decidi envelhecer e envelhecer foi o melhor acontecer. E por isso decidi envelhecer e usufruir das regalias advindas do trabalho de anos. Envelhecer para viver. Envelhecer para não correr.

Egoísta! As vozes são imediatas, a inveja também. Não temos direito. Não temos direito à preguiça, ao calor, aos teus braços, um livro, um jornal, um café, uma cerveja, sair, a bicicleta, a praia, os amigos, alguém com quem falar, somos escravos de nós mesmos e o escravo só tem direito ao trabalho e sem trabalho o escravo não tem razão de ser, existir. A lavagem cerebral. Dependendo dos outros, não temos o direito. O direito de não produzir. O direito de refastelar, repimpar, repatanar, apoltronar, amesendar, as palavras existem, a vontade também.

A cabeça? A cabeça tem de estar pelo menos 12 meses à frente e ter sempre algo a contar ao outro, com quem nos cruzamos na rua, crucificando esta felicidade em prol da conversa de circunstância: quais são os teus planos, qual é o teu projecto, quais os objectivos, o que vais fazer, e se não fizermos nada, o que têm os outros a ver com isso? Existir para produzir, produzir para possuir, possuir para mostrar e mostrar para existir. 

Deixei de mostrar. E quando deixei de mostrar, deixei de me preocupar. Não devo nada a ninguém. Devo a ti, tudo, esta vida a dois. Mas só a ti. E passei a apreciar o que me rodeia: a casa, pintada ao nosso gosto, a sorte de um emprego, uma carreira, o caminho para casa ao fim de cada dia, um simples raio de sol, passear de mãos dadas, escrever, a vida ainda pela frente, um bom filme a dois, uma piada, fazer-te rir, a sorte de estarmos juntos, um passeio de bicicleta, sair com os amigos, regressar a casa depois de muitos meses.

Deixei de pensar em tudo o que ainda poderemos alcançar daqui por dez anos: os comprimidos para a tensão, os papéis do divórcio? Só se for. Já não quero alcançar, já não quero correr quando o verdadeiro desafio é poder continuar a viver, tal e qual como estou, agora sim, pelo menos uma vez na vida e um dia de cada vez. 

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