Insatisfação com a democracia em Portugal

O Parlamento é cada vez mais uma arena onde os temas em discussão tendem a converter-se em meros pretextos de afirmação das tribos partidárias e em jogos de um mesquinho cinismo calculista

Na crónica anterior chamei a atenção para uma notícia do PÚBLICO sobre um estudo da Universidade de Cambridge acerca da crescente insatisfação com a democracia, um fenómeno global mas incidindo de forma grave nos dois países que estão politicamente mais em foco este ano: o Reino Unido, acabado de sair da primeira fase do “Brexit”, e os Estados Unidos, em campanha para as eleições presidenciais de Novembro.

Embora o estudo, realizado em 154 países e abrangendo quatro milhões de pessoas, não refira especificamente Portugal, a última semana deu-nos motivos para reflectir sobre a eventual pertinência da nossa insatisfação com a democracia que temos.

Com efeito, as sucessivas cenas de baixo teatro revisteiro que se sucederam no decorrer dos debates em torno do Orçamento do Estado (OE) – e, particularmente, a propósito do IVA da electricidade – não poderiam ser mais propícias a um fenómeno do género em Portugal. Não porque constituam de todo uma novidade, mas porque parecem ter atingido um alto grau de saturação, com a perda de credibilidade dos rituais partidários na Assembleia da República. Só mesmo a tradicional apatia da opinião pública portuguesa – ou o seu acomodamento às repetitivas encenações políticas – pode explicar que estas últimas cenas parlamentares não tenham ainda provocado um movimento de insatisfação com a democracia idêntico àquele que se regista a nível internacional.

As notas críticas e de culpa, distribuídas pelos comentadores dos media ou com que se foram mutuamente mimoseando os diversos intervenientes nos debates, não disfarçam o essencial: o Parlamento é cada vez mais uma arena onde os temas em discussão tendem a converter-se em meros pretextos de afirmação das tribos partidárias e em jogos de um mesquinho cinismo calculista, sejam quais forem as razões políticas reivindicadas pelos diferentes actores. Daí o psicodrama patético do IVA da electricidade que quase todos procuraram capitalizar, sob a capa dos mais nobres propósitos, aos olhos das respectivas clientelas, sem esquecer o Governo (algumas intervenções mais agressivas e moralistas foram assumidas por figuras de segundo plano com óbvios propósitos de ascensão, como certos secretários de Estado).

Não que a baixa do IVA ou a sua permanência não pudessem ser justificadas por motivos pertinentes, embora diversos ou até antagónicos, mas porque, afinal, essas razões se diluíam nas simulações, rábulas e máscaras com que os diferentes actores apareciam, como virgens imaculadas, aos olhos dos respectivos eleitorados (mesmo que os conduzissem à confusão pura e simples, como parece predestinado o PSD, ainda em busca de uma identidade reconhecível).

Lembra-se com frequência que Portugal é, apesar do seu atraso económico, um lugar verdadeiramente invejável pela sua amenidade climática e social, pela segurança e pela beleza das paisagens. Mas ouve-se também cada vez mais que, embora não sendo ameaçados por desestabilizadores movimentos migratórios, somos um país cada vez mais vulnerável aos discursos extremistas (o que explicaria a recente subida do Chega nas sondagens).

Afinal, as duas imagens e dimensões de Portugal completam-se estranhamente e é no meio delas que, apesar dos nossos “brandos costumes”, se introduz a previsível vulnerabilidade à insatisfação com a democracia. Não que a ditadura seja propriamente atractiva, mas a erosão dos valores democráticos exibida no Parlamento constitui um motivo de cansaço e desencanto que vai corroendo a tal apatia tradicional e o acomodamento da opinião pública às encenações políticas. Como acabamos de ver nos debates sobre o OE, não nos faltam razões para estarmos insatisfeitos com a democracia que temos.

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