As cicatrizes

Disfarçado, valendo-se dos mais vulneráveis e mais impreparados, o fascismo cavalga de botas cardadas.

Foto
Adriano Miranda

Veio em tronco nu. Pediu-me para lhe fotografar a cicatriz. Com a minha máquina de médio formato ajoelhei-me. Adivinhava-se o extenso corte e os pontos certinhos. Tinham um tom rosado. De pele nova e frágil. O meu pai tinha sido operado a um tumor. Tremi ao ver tamanha cicatriz. Mas o meu pai era assim. Um apaixonado pela imagem. Pelo cinema. Pela fotografia. Nas frequentes férias em Lisboa íamos três vezes por dia ao cinema. A duas sessões no São Jorge e à sessão da meia-noite no Quarteto. Guardei o rolo de 12 fotogramas numa gaveta. Ficou lá à espera das melhoras do meu pai. Nunca mais o fotografei. As melhoras nunca chegaram. Lembro-me do último beijo, uma segunda-feira de manhã bem cedo. A longa viagem de comboio para Lisboa. A aula de fotografia. O telefonema. E a voz arrastada do outro lado da linha. O teu pai morreu, Adriano.

Abri a gaveta. Destrui o rolo de 12 fotogramas. Tinha a cicatriz do meu pai bem presente no meu cérebro. Não precisava de a ver impressa em sais de prata. Foram as únicas fotografias que fiz e que nunca vi.

Passaram muitos anos. Mas a imagem da posição do meu pai, ao lado de uma janela para receber a luz do sol, (eu já tinha essa mania de aproveitar a luz que a natureza nos oferece para fotografar), sorridente, a exibir a sua cicatriz para o aprendiz de fotógrafo, ficou guardada para sempre dentro de mim. Aquela seria a primeira cicatriz que fotografava. Mal eu sabia que o futuro me reservaria tantas outras cicatrizes.

Foi o que escolhi. Contar histórias com fotografias. Quando alguém diz que o seu maior sonho é morrer. Quando alguém olha com vergonha. Indefeso. Quando alguém assume que tem fome. Quando alguém enfrenta o mar para fugir. Quando alguém corre com uma criança ao colo e o sangue a cair. Quando alguém lança bombas pelo telefone. Podemos ou devemos ficar no nosso conforto? Já não temos cicatrizes a mais para aprendermos que este é um caminho gasto? E com dever de missão, fotografo com inquietude, com a ansiedade própria de um contra-relógio. Sim. Não temos muito mais tempo para evitar o sangue.

Num mês de Agosto troquei a praia por uma das maiores cicatrizes do mundo. O campo de concentração nazi de Auschwitz-Birkenau, na Polónia. Levei os meus dois filhos. Conversámos sobre a Segunda Guerra Mundial. Falámos do fascismo e do nazismo. Não a ler num qualquer manual de História escrito por um qualquer historiador. Não. Conversámos ali, na terra derramada. Junto aos fornos crematórios. Nas camaratas. Na sala onde as pessoas se despiam para irem para as câmaras de gás. Na parede de fuzilamento. No consultório das experiências médicas feitas com humanos. Nas grandes vitrinas repletas de cabelos, sapatos, óculos e malas dos prisioneiros. Nos carris que faziam chegar os vagões. Colocámos uma flor num bonito relvado. Uma homenagem a quem morreu, a quem se salvou e a quem os libertou. Não nos fotografámos. Aquele pedaço enorme de terra é sagrado. É um memorial à dor. Ao sairmos dali, a única recordação que se pode trazer é sermos outros. Mais humanos. Homens e mulheres de mais Liberdade.

Quero lá voltar. Levar novamente os meus filhos. E voltar a conversar. Não do passado, mas do presente. Se possível sentarmo-nos junto à parede dos fuzilamentos. Um dos locais que mais me impressionou. E perguntar-lhes se querem que aquela parede volte a ter o cheiro a pólvora e a carne. Dizer-lhes que o fascismo é crime. E os criminosos estão a voltar. Até nós deixarmos.

Disfarçado, valendo-se dos mais vulneráveis e mais impreparados, o fascismo cavalga de botas cardadas. Chega ao poder, chega aos parlamentos. Dos EUA ao Brasil e à Hungria, da Ucrânia à Polónia, à Áustria e a Espanha, um pouco por todo o lado, vão espalhando o ódio. Aqui, uma figura ridícula é levada em ombros por fascistas que sempre se disfarçaram. Nunca abandonaram a bolorenta esperança de acabar com a democracia. Não existe liberdade de expressão que os possa defender. O que eles dizem, escrevem e fazem é crime. Não é opinião. Germinando como larvas com “soundbytes” cirúrgicos, apoiados por uma comunicação social ora irresponsável, ora conivente, vão fazendo a sua marcha, com a utopia de que um dia poderão triunfar outra vez.

Pedro, de olhos rasos de lágrimas, conta as noites e dias sem dormir. Conta as torturas e as humilhações. Mostra as cicatrizes nas costas das pontas de cigarro. No peito a cicatriz provocada pela chicotada de um cinto. Pedro não foi preso em Auschwitz-Birkenau. Foi preso no Forte de Peniche. As suas marcas falam alto. Na tribuna da denúncia. No acordar da memória.

O meu pai com o seu sorriso e com a sua cicatriz ensinou-me que nada se pode esquecer. De nada me valeu destruir o rolo fotográfico.

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