Não há dinheiro! O gato comeu-o

Tudo é medido pelo dinheiro. Ainda assim nas relações intersubjectivas, há dificuldade em falar dele. Ou faz-se em surdina, como se fosse segredo ou estigmatizante. Às vezes parece que não existe.

O dinheiro não é garantia de felicidade, diz quem o pode dizer, embora seja essencial em alturas de infelicidade, afiançam os que lutam para sobreviver. Também existe uma tendência para o separar das relações íntimas. As paixões são cegas e não olham a carteiras. O problema é depois, porque os divórcios são quase exclusivamente financeiros.

Tudo é medido pelo dinheiro. Ainda assim nas relações intersubjectivas, há dificuldade em falar dele. Ou faz-se em surdina, como se fosse segredo ou estigmatizante. Às vezes parece que não existe. Não é enunciado, embora paire no subconsciente de todos. Numa perspectiva macro sabemos onde está. Concentrado nos ultra-ricos. Circulando como se tivesse vontade própria globalmente, sem que os governos locais tenham mão nele. Em paraísos fiscais, remetido a esquemas financeiros, na tensão entre legalidade e ilegalidade, servindo redes de interesses. Portanto, existe, mesmo quando não deixa rasto. Está é mal distribuído.

Quando se desce do pedestal macroeconómico e se entra na rotina quotidiana, evapora-se. No caso de Portugal, país onde falar dele parece pecado, ainda mais. Vai-se a entrar para uma reunião de trabalho e, antes que alguém lance qualquer ideia para a mesa, já outro avisa: “Há pouca verba.” E toda a gente fica com medo de abrir a boca. Também existe o contrário. Desgastamo-nos em grandes planos e, depois, dizem-nos que não é possível. Tenta-se discutir opções. A resposta: “Não há dinheiro!”

Nas actividades intelectuais ou artísticas a precariedade é ainda mais precária. Há convites para “produzir textos”, como agora se diz, ou para actuar em salas, por parte de músicos ou outros agentes, onde se parte do não-pagamento, ou a haver é “simbólico”. Depois pergunta-se se quem vai fazer o estudo gráfico, a impressão ou a encadernação, no caso de um livro, ou o porteiro e a menina do bengaleiro, no caso de uma actuação, também não serão pagas, e a resposta é: “Ah! Mas isso é diferente!”

É fácil seduzir quem desempenha com paixão a sua actividade e é uma lógica circular difícil de contrariar porque existe sempre alguém que aceitará. Os que estão a começar, porque acham que terão visibilidade. Os que acumulam cargos, porque querem aparecer sempre. As hipóteses são múltiplas. Não queremos enfrentar que o gratuito significa sempre uma forma de dominação. Um hipotecar do futuro. Claro que toda a gente, aqui e ali, trabalhou à borla. Por amizade. Porque eram projectos nos quais acreditava e onde os envolvidos estavam nas mesmas circunstâncias. Para já não se falar na lógica do voluntariado.

Até os ricos, hoje, parecem ter pudor do dinheiro, dizendo, com comoção, que importante é espiritualismo, e não materialismo. Já quem tem pouco, imagina que quem tem muito não precisa de mais. Mentira. Quem muito tem, mais quer. Há formas estruturais de o perceber. Mas também nas relações fugazes. Experimente. Aproxime-se de quem aufere muito mais que você. Revele que está insatisfeito, na esperança da solidariedade. Pode acontecer. Mas o comum é a diluição no colectivo (“é a crise, está mal para todos”), ou “isto para os meus lados também não está fácil.” Às tantas estará a competir com o abastado a ver quem é mais desgraçado.

E aqui estamos no país dos salários baixos e da precariedade. Num acentuar de dependências, sem vidas dignas. E o que fazem os governantes? Continuam com a tese de que é preciso crescer economicamente antes de redistribuir, quando já se percebeu que não é garantia de nada, sem políticas adequadas, com o esmagamento dos rendimentos no meio e base da escala. Ou seja, há redistribuição, a favor de quem já tem muito.

Felizmente, existe a rua, para nos dar respostas. Há dias, fui abordado: “Oh! Cota! Orienta aí uns trocos!”, ouvi. “Não tenho”, respondi. “Pois, agora ninguém tem dinheiro, foi o gato que o comeu!”, foi-me devolvido. Está tudo explicado.

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