O segredo está na escrita

É fácil tomar por garantida a qualidade da televisão britânica. À terceira temporada, The Crown comprova como é do argumento que tudo nasce.

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O tema de The Crown é muito mais do que apenas um olhar por trás do véu da monarquia britânica DR

É muito fácil tomar as coisas por garantidas. Por exemplo: de uma série inglesa, esperamos sempre interpretações impecáveis, um cuidado na reconstituição de época ou na produção visual, um profissionalismo cumpridor, pragmático, em detrimento de qualquer originalidade ou de qualquer rasgo de inspiração. Nem duvido que é por isso que The Crown, a série que Peter Morgan desenvolveu a partir da sua própria peça teatral The Audience, se tornou no fenómeno à escala global que é.

Mas é importante confirmar como, à terceira série de um total de cinco previstas, o que The Crown nos confirma é como a televisão britânica (e, apesar dos bolsos fundos da Netflix, esta é uma série de produção britânica) sempre se construiu a partir da escrita. O papel que os showrunners têm hoje nas séries televisivas foi, desde sempre, assumido na televisão inglesa pelo papel do guionista, em estreita colaboração com o realizador. No caso específico da série sobre o longo reinado da rainha Isabel II, Morgan é mais do que um simples showrunner – é mesmo o escritor integral de todos os episódios (mesmo que ocasionalmente em co-autoria). São 30 horas de televisão até agora e é fascinante perceber como é o tom dos argumentos, mais do que as passagens de testemunho de actores e realizadores, que dita o ambiente e as “rimas” internas da série.

O tema de The Crown, já o percebemos, é muito mais do que apenas um olhar por trás do véu da monarquia britânica: trata-se de olhar para esta família e ver como o preço de um cargo impossível vivido permanentemente sob os holofotes a transforma, como todas as relações humanas acabam por se tornar em puros actos de transacção onde a esfera do pessoal se submete sempre à esfera do público. Nas primeiras duas temporadas, com Claire Foy, Matt Smith e Vanessa Kirby, assistimos à negociação de fronteiras e limites de Isabel, do príncipe Filipe e da princesa Margarida.

O testemunho foi passado a Olivia Colman, Tobias Menzies e Helena Bonham Carter para uma terceira temporada que, ambientada durante a década de 1960, se debruça sobre o momento em que a Inglaterra imperial se desintegrava de vez, e sobre as frustrações e tensões que isso cria no próprio interior de uma família real criada num outro quadro de referências. E é a escrita elegante, elíptica, de Morgan que permite, quer ao elenco, quer aos realizadores (Benjamin Caron assina quatro dos dez episódios, com os restantes divididos por Christian Schochow, Jessica Hobbs e Sam Donovan), compensar a aparente “pressa” com que a série atravessa os swinging sixties

O dramaturgo recorre certeiramente a momentos relevantes da década (o desastre mineiro de Aberfan, a chegada do homem à Lua, a morte do duque de Windsor) para emprestar consistência dramática, para humanizar, personagens que nos habituámos a ver como símbolos. Figuras que tomámos por garantidas e que The Crown nos convida a ver como gente. É mais difícil do que parece. E Peter Morgan ainda não tropeçou uma única vez em 30 horas de televisão.

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