Drag queens, artistas de arrebatamento

A drag art contribui indispensavelmente para a expansão dos possíveis estéticos: é uma arte holística, uma arte avalanche, uma arte de arrebatamento que se realiza em actuação, em dança, em música, em moda, em entretenimento, em humor, em maquilhagem, em desobediência.

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Paulo Pimenta

A liberdade é perigosa, sempre. Todo o gesto inédito descortina outras possibilidades de existência que estavam escondidas atrás da familiaridade bocejante de todos os dias. Enquanto todo o mundo disputa a supremacia de ser idêntico ao outro, um indivíduo corajoso de si caminha para o lado oposto, sorrindo sua nova plenitude, recusando viver o mesmo dia igual por anos a fio.

Esse acto protagonista, esse acto fundador, esse acto solitário, sincero e sem culpa, abre uma trilha de diversidade na estreiteza de um cinza quotidiano, e demonstra a imensidão colorida que o medo de ser diferente sufoca. O primeiro gesto de liberdade é sempre uma afirmação de ousadia, a fronteira entre o que é e a criatividade do que pode ser.

Exercer a pluralidade que existe em mim, nesse sentido, é um compromisso definitivo com os outros, é um gesto colectivo de ruptura que inaugura a solidariedade de uma geração. Encontrar a sinceridade do meu desejo, naquele eu imenso e profundo, rompe nos outros o receio da solidão inédita, duas alegrias habitando uma mesma inquietação: eu fiz; se você fizer, conquistamos o companheirismo de ser novidade, juntos.

A linguagem drag queen realiza tudo isso, só que na rebeldia do estético: construindo uma personalidade que é, ao mesmo tempo, espalhafatosa, debochada e protagonista, permitindo uma auto-estima aniquiladoramente maquilhada, transbordando a visualidade purpurina do próprio excesso, a drag reduz a intransigência de género a uma caricatura corajosa de humor. Ela sorri, para todos os holofotes, o absurdo infinito que é ser normal.

E desafiar, ainda que artisticamente, a rigidez masculina e feminina de uma biologia sem vida leva-te a um território de permanente ebulição política, de virulenta e indignada reacção tradicional, um território de aridez moralista confirmado em cada rosto quotidiano de reprovação. Ao dar vida a essa personagem que vai dizer o que todo mundo precisa ouvir, aquilo que está interrompido no dia-a-dia cínico e sem oxigénio da nossa seriedade bem comportada, a drag alcança a juventude de uma liberdade sem trégua. Existindo sem culpa, ela revoluciona-se arte. 

No meio do palco, a luz cor de laranja aponta para a próxima coreografia milimetricamente dobrada de pop, uma inescrupulosa ginástica de pernas e braços que emudecem a gravidade com as possibilidades impensáveis do corpo. A luz cor de laranja, aos poucos, vai se dissolvendo azul num palco sem dançarinos, a música vai diminuindo e um microfone afiado de coragem expande a voz drag em dezenas e centenas de risadas pop-porno-políticas. Enquanto isso, o suor brilha toda a expressividade do esforço drag, horas e horas de bastidores, costura e invenção preparando a estética ambiciosa do exagero. Desafia, e a drag queen narra todo o Novo Testamento com um saco de lantejoula.

O paradigma de arte contemporânea inaugurou uma estética insubmissa que expande as possibilidades artísticas para as mais variadas regiões da vida. Ela deixa para trás a ditadura renascentista do quadro pendurado na parede, deixa para trás o monopólio da perspectiva linear ditando os limites da beleza convencional, e caminha em direcção ao mundo da vida, dos objectos ordinários, dos corpos que se realizam em arte. A estética contemporânea é uma linguagem de rupturas reinterpretando os significados que estavam escondidos em baixo da normalidade — ela ensina pela primeira vez o que conhecemos em silêncio há gerações.

E a drag art contribui indispensavelmente para a expansão dos possíveis estéticos: sendo uma arte holística, uma arte avalanche, uma arte de arrebatamento que se realiza em actuação, em dança, em música, em moda, em entretenimento, em humor, em maquilhagem, em desobediência, tudo isso no sem fôlego de 40 anos de rebeldia, a arte drag consegue organizar em torno de si um conjunto de experiências e sensações que transbordam os limites convencionais das estéticas particulares, provocando um espectáculo-mosaico exaustivamente ensaiado de improvisos.

A obra de arte drag queen é, acima de tudo, em cima de um palco, a concretização libertadora de uma biografia que estetiza a própria existência em performance e prazer, matriarcalmente.

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