Uma agenda política para o “Brexit”

Um ponto parece certo, teremos mais um ano para caminhar em cima do fio da navalha.

1. Nada se adianta ou inova, se se insistir em que o “Brexit” representa uma enorme perda para a União Europeia. Uma perda política, simbólica e cultural; uma perda geopolítica e estratégica; uma perda económica, financeira e demográfica. Haverá uma Europa antes do “Brexit” e uma Europa depois dele. Reciprocamente a saída da União implica uma enorme perda e grandes riscos para o Reino Unido tal como o conhecemos. A situação a que chegámos e que desembocou neste resultado é uma situação em que as duas partes perdem. E perdem muito. A extensão e a profundidade dos danos dependerá estreitamente do acordo que agora for efectuado para regular e reger a relação futura. Muitos danos podem ser mitigados e minimizados. Ou, pelo contrário, podem ser alargados e exponenciados.

2. Na regulação da relação futura, o primeiro grande risco é o tempo. Por força da obstinação de Boris Johnson, o período de transição termina a 31 Dezembro de 2020, o que significa se dispõe apenas de menos de 11 meses para efectuar as negociações, chegar a um acordo e aprová-lo no parlamento britânico, nas instituições europeias e eventualmente nos parlamentos nacionais e até regionais dos 27 Estados-membros (porque, dependendo do conteúdo do acordo, isso pode revelar-se necessário). Na prática, os negociadores de um lado e do outro não disporão de mais de 5 ou 6 meses úteis. Pois bem, se houvermos em conta que a duração média das negociações de acordos comerciais com Estados terceiros ronda os 7 anos, é fácil antever a dimensão da tarefa que está diante de ambas as partes. É certo que em face de parceiros como o Canadá, o Japão ou o Vietname, trata-se de criar e construir uma plataforma comum. Já, nas negociações com o Reino Unido, cura-se ao invés de “desfazer” ou de excepcionar pontualmente uma plataforma que está já criada e consolidada. Sucede, porém, que, nas declarações de ontem, o primeiro-ministro britânico deixou claro que não pretende manter um alinhamento sistemático com os padrões e standars europeus, por exemplo, a nível de protecção social e ambiental. E que, por sua vez, essa é uma conditio sine que non do lado europeu para garantir um acesso britânico pleno e não sujeito a tarifas e outras barreiras aduaneiras.

Dadas estas diferenças de partida e o prazo curtíssimo de negociação, o risco de este processo poder desaguar num hard "Brexit” não pode ser descartado. São já várias as soluções provisórias, precárias ou incompletas apresentadas para evitar a materialização desse risco. De um acordo-quadro genérico a carecer de posteriores acordos sectórias de concretização até à simples celebração de alguns acordos parcelares e segmentados, que possam estar em vigor a 1 de Janeiro de 2021, muitas soluções híbridas têm sido aventadas. Um ponto parece certo, teremos mais um ano para caminhar em cima do fio da navalha.

3. O grande mistério continua a ser o desígnio geopolítico do Governo britânico. Mercê do apoio constante do Presidente Trump ao “Brexit”, era expectável que o Governo de Johnson estabelecesse uma relação privilegiada com os EUA. Também talvez porque são as duas economias globais que mais dependem dos serviços. A abertura dos ingleses à chinesa Huawei deu, no entanto, um primeiro sinal de que a relação transatlântica não seria posta à frente de tudo e deixa um indício de que já há concessões à realpolitik. A declaração de ontem, com o elogio irrestrito do livre comércio global e a condenação dos protecionismos (incluindo aí o “trumpiano”), aponta também para uma desvalorização – mesmo que táctica – da relação preferencial com os EUA. De resto, basta olhar para a posição quanto ao Irão para notar que, pelo menos nesse particular, os britânicos estão mais perto da linha europeia do que da linha norte-americana. Esta ideia de a Grã-Bretanha se tornar no campeão universal do comércio livre não permite neste momento perceber que tipo de posicionamento acabará por vingar. Corre por aí a ideia estranha de que subsiste a vontade de transformar as ilhas britânicas na Singapura do Ocidente, o que também não parece coadunar-se com esta defesa irrestrita da liberdade de comércio.

Aparentemente, por detrás da vontade de não alinhamento com a UE, está um possível relaxamento nas exigências sociais e ambientais de modo a incrementar a competitividade. A confirmar-se esta orientação aumenta obviamente o risco político interno, pois o “Brexit” foi acompanhado da promessa de um maior investimento em políticas sociais (Serviço Nacional de Saúde, à cabeça) e a base de apoio do actual Governo assenta em muitas circunscrições com grande debilidade e carência social (Norte da Inglaterra, por exemplo).

4. Mais sério e problemático é o risco de dissolução do Reino Unido, causado pela aspiração independentista da Escócia e pelo horizonte de reunificação das duas Irlandas. Assume-se hoje que um dos factores relevantes para o resultado do referendo escocês de 2014 foi a perspectiva de que, uma vez independente, o novo país estaria fora da UE. Pois bem, tendo votado por se manter no Reino Unido e assim na UE, vê-se agora confrontado com uma saída forçada, para a qual não contribuiu. Eis um forte argumento para fazer um novo referendo que o Governo inglês se obstina em não autorizar. A solução que Boris Johnson encontrou para a Irlanda do Norte e que lhe permitiu chegar a um acordo com a UE, ela mesma já favorece a saída daquele país do Reino Unido. Na verdade, o truque de Johnson foi aceitar um regime especial para o Ulster em que este território fica sujeito às regras europeias enquanto que a Grã-Bretanha fica fora delas. Num certo sentido, Johnson abdicou da Irlanda do Norte, provavelmente antecipando que, mais tarde ou mais cedo, haverá lugar à reunificação. Esta ambiguidade negocial criou um caldo político que pode bem sedimentar uma vontade secessionista do Ulster, ainda que isso possa não passar por uma imediata e simultânea reunificação com a República do Eire.

SIM.  Michel Barnier. Depois de três anos a chefiar as negociações da saída, cabe-lhe agora liderar a feitura do acordo do "Brexit” sobre a relação futura. Ele é a garantia de um resultado de excelência.

NÃO. Ministro Santos Silva. Apesar de agora querer escondê-lo, o Governo português nunca percebeu a perda geopolítica que o “Brexit” traz a Portugal. Anda apenas a reboque da linha geral da UE.

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