A Garota Não: “Cresci com aquele pulsar musical, em que o corpo vai dançando”

Nascida num cruzamento de influências, onde se misturam José Afonso, Fausto, África e a MPB, A Garota Não apresenta ao vivo o seu disco de estreia, Rua das Marimbas n. 7. Esta quinta-feira, no CCB, em Lisboa, às 21h.

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A setubalense Cátia Mazari Oliveira é, na música, A Garota Não DR

Nasceu em Setúbal, no dia 29 de Outubro de 1983, e nas suas deambulações musicais andou pelo jazz e pela música popular brasileira até se fixar num projecto próprio. Foi assim que Cátia Mazari Oliveira se transformou em A Garota Não e lançou em 2019 um disco, Rua das Marimbas n. 7, primeiro difundido nas plataformas digitais e depois nas lojas em CD, mas com um acabamento incomum, artesanal, como se cada disco fosse um objecto único. Com dois singles já lançados (Adamastor e No dia do teu casamento), é apresentado ao vivo esta quinta-feira no Pequeno Auditório do CCB, em Lisboa, às 21h. Mas como é Cátia Oliveira se transforma em A Garota Não?

A música esteve sempre próxima, desde cedo, como ela explica ao PÚBLICO: “Entre os 8 e os 10 anos estudei piano, em Setúbal, mas antes disso sempre tive muita vontade de ouvir música. Eu vivia num prédio, daqueles de bairro social, onde no rés-do-chão havia uma família cigana que ouvia flamenco, no primeiro andar uma família angolana que ouvia tudo e mais alguma coisa que tivesse aquela raiz africana e no andar de cima havia um vizinho que era louco por electrónica, tudo com o som alto. O meu pai ouvia José Afonso, Rui Veloso, Bob Dylan ou Neil Young, o meu irmão mais velho era ligado ao rock e ao metal, a minha mãe cantava muito bem. Tudo muito ecléctico. E eu cresci com aquele pulsar musical, em que o corpo vai dançando.”

Fazer o que o coração diz

O nome A Garota Não surgiu-lhe mais tarde, quando já cantava em público. “Tive um período da minha vida em que fiz um circuito de concertos de MPB, ou de jazz, e procurava levar um repertório fora do que era mais conhecido, como a Garota de Ipanema ou Águas de Março, temas sobre os quais eu não tenho nada de novo a acrescentar. Ora num desses circuitos, onde percorremos uma série de adegas (em tertúlias onde os enólogos iam falando do vinho e se ouvia música) havia um senhor numa mesa lá atrás que, a cada tema que eu cantava, dizia: ‘toca a Garota de Ipanema!’ A história nasce daí. Porque já no final, como o senhor voltou a impor a sua vontade, eu disse: ‘A Garota não, por favor. Pode ouvir esse tema em elevadores, em esplanadas, em mil colectâneas de música brasileira, eu não tenho nada a acrescentar. E foi uma reacção curiosa, a do resto do grupo que estava ali.”

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Capa de Rua das Marimbas n. 7

A resposta tornou-se símbolo, ou marca, porque Cátia adoptou-a como nome artístico: “Fazendo a ponte para outros momentos da minha vida, não tem a ver com ser a garota do contra, mas sim com um sentido de responsabilidade, com o direito de fazer o que o coração nos diz e que sentimos que estamos cá para cumprir.” E esse sentido já vinha de trás, porque desde os primeiros tempos de escola que Cátia se lembra de escrever. “Fazia letras para canções que já existiam. E a minha professora puxava muito por esta minha parte de escrita e fantasiosa. Lembro-me de fazer músicas sobre dinossauros ou ursos, e inventava melodias que gravava sem instrumentos, porque não sabia tocar nenhum, num daqueles rádios que tinham um botão de ‘rec’.”

O desafio maior surgiu-lhe na Faculdade, quando o professor de inglês desafiou os alunos a fazerem uma apresentação pública. Cada um teria de dizer um poema, um excerto de teatro, fazer uma performance, o que quisessem, mas perante um auditório. “Aquilo para mim foi uma provação. E pensei que o melhor seria fazer uma canção, porque podia esconder-me atrás da guitarra (já dava os primeiros toques, numa guitarra antiga do meu pai). O leit-motiv era uma exposição que estava no átrio e tinha de ser em inglês. E a reacção foi inesperada: quando acabei, tinha o auditório em peso a aplaudir.”

José Afonso, Fausto, Sérgio

Isso foi em 2002, e até gravar Rua das Marimbas n. 7 ainda passariam muitos anos, nos quais Cátia foi amadurecendo ideias, conceitos e conhecimentos musicais. O disco tem, aliás, um extenso rol de agradecimentos, a familiares, amigos e músicos, que reflectem muito do que foi esse percurso. “Falo aí, por exemplo, do Vicky ou do Diogo Clemente, que tive a sorte de encontrar neste caminho e que me desafiaram, dizendo até ‘faz-me uma letra’. Ou o Valter Rolo, um amigo ainda mais próximo.”

Mas as influências vêm de trás, de José Afonso (“pela força da mensagem, pela forma como se posicionava politicamente, socialmente”), de Fausto Bordalo Dias (“às vezes ouço-o e penso: porque é que eu estou a fazer música quando este homem já fez estas coisas maravilhosas?”), de Sérgio Godinho (“que é outra delícia a escrever”). E assim nasceram canções como No dia do teu casamento, A morte não sabe contar (que Cátia escreveu após a morte da sua mãe), Mundo do avesso (que tem um excerto de uma entrevista a José Sócrates, na Operação Marquês), A canção, Adamastor, Monstro ou 80.nada, que reflecte os dramas da geração dos recibos verdes e da sua falsa “independência” laboral. “É um pouco a minha história de vida, até há pouco tempo. Dezassete anos a recibos verdes, o que é uma perda lamentável na vida de um jovem. E é um mal demasiado comum.”

O título do disco, Rua das Marimbas n. 7, é fantasioso, não se refere a nenhuma rua em particular. Porém, numa entrevista recente, Cátia descobriu (porque a entrevistadora fez essa pesquisa) que há uma rua com esse nome, não em Portugal mas no Brasil. Agora, por uma noite, ela transfere-se para Belém, em Lisboa, onde A Garota Não terá consigo, como no disco, Sérgio Mendes (guitarra, teclados) e Diogo Sousa (bateria, teclados).

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