Coronavírus: a China está a esforçar-se para evitar um “momento Tchernobil”

À medida que o surto de coronavírus sofria um efeito bola de neve, a máquina do partido apressavam-se a proteger a exposição política de Xi Jinping. Depois desta crise, o líder chinês poderá afastar altos dirigentes, tentando apaziguar a indignação popular.

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Uma força paramilitar da polícia de Shenzhen recebe instruções de um oficial antes do corte das ligações ferroviárias entre Hong Kong e o resto do território chinês, medida para tentar travar o surto de coronavírus EPA/FEATURECHINA

Em Janeiro de 2019, à medida que a guerra comercial com os Estados Unidos se intensificava, o líder chinês Xi Jinping convocou uma reunião com altos responsáveis do Partido Comunista para avisar acerca do inesperado surgimento de “acontecimentos de cisnes negros” * que poderiam desestabilizar o regime imposto há 70 anos.

Exactamente um ano depois, surgiu efectivamente um desafio inesperado – não originário das salas de Washington, mas sim das bancas dos mercados em Wuhan.

Enquanto a China combate uma epidemia de coronavírus que poderá ter implicações profundas na saúde pública a nível global e na economia interna, o Partido Comunista também se esforça para lidar delicadamente com os riscos políticos enquanto os cidadãos se enfurecem face à forma desajeitada como os responsáveis estatais lidaram inicialmente com o surto.

Nos últimos dias, os líderes máximos da China parecem ter adoptado uma estratégia dupla: por um lado permitir que os cidadãos exprimam a sua frustração com as falhas dos funcionários locais em Wuhan — que inicialmente ignoraram e esconderam o coronavírus —, enquanto por outro se juntam em redor de Xi Jinping, para proteger o homem que tem cultivado uma imagem de bem-amado “líder do povo”.

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Xi Jinping tem feito declarações erráticas sobre o surto de coronavírus Florence Lo/Reuters

“A percepção do público será definida pela máquina de propaganda, e essa máquina está agora a trabalhar a todo o vapor para proteger a reputação de Xi”, afirmou Steve Tsang, director do Instituto Chinês na Universidade SOAS de Londres. “Eles têm de manter o mito de que ele nunca erra.”

À medida que, nesta semana que termina, a crise aumentou exponencialmente de forma imprevisível, os órgãos de comunicação social do partido limitaram cuidadosamente a exposição política do líder chinês.

Após Xi Jinping se ter reunido na terça-feira com o director da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom, os meios de comunicação social estatais inicialmente divulgaram imagens dele a dizer a Tedros que ele “dirigira pessoalmente” a resposta ao surto. Mas mais tarde os canais públicos citaram Xi Jinping a afirmar que o seu Governo estava a “coordenar colectivamente” a resposta.

Xi Jinping já tinha surgido uma vez na televisão, no Dia de Novo Ano Lunar, a ordenar, de forma firme, a formação de uma equipa de resposta à epidemia. Mas não se nomeou a si próprio como director dessa comissão.

Responsáveis chineses podem recear uma “catástrofe” política se o vírus continuar a espalhar-se para cidades maiores e importantes como Pequim e Xangai, afirmou Victor Shih, especialista em Economia Política Chinesa na Universidade da Califórnia em San Diego. “Se Xi estava absolutamente convicto de um resultado vitorioso face à doença, por que razão não se colocou a si mesmo a comandar e assim recolher todos os louros e a glória?”, questiona Shih.

Efeito Tchernobil

A confiança do povo em Xi Jinping, cujo estilo mais musculado foi apresentado como sendo mais eficaz do que a administração descentralizada dos seus antecessores, poderá “evaporar-se” se a situação piorar dramaticamente, acrescenta Shih.

Enquanto quase 55 milhões de pessoas se adaptam a uma quarentena de duração indeterminada na China Central e as companhias de aviação internacionais começam a reduzir os voos para o país, as frustrações acentuam-se.

No Twitter, uma rede social a que não se consegue ter acesso no interior da China sem ter um software específico, os utilizadores partilharam de forma sistemática um vídeo de uma mulher de Wuhan zangada a questionar como é que o partido poderia “construir uma sociedade moderadamente próspera se não restarem quaisquer pessoas”.

Outros escolheram o Douban, um equivalente chinês do site IMDB.com, onde deixaram críticas codificadas à série da HBO Chernobyl. Muitos relacionaram a falta de eficácia oficial na China dos dias de hoje e os derradeiros anos da União Soviética e insinuaram que o vírus de Wuhan poderá ser uma espécie de equivalente a Tchernobil. “Existem tantas parecenças”, escreveu o utilizador jianghai jiyusheng: “Haverá daqui a alguns anos uma série acerca da pneumonia de Wuhan?”

Considera-se geralmente que o desastre nuclear de Tchernobil, em 1986, terá acelerado o processo de colapso da União Soviética, que se consumou poucos anos depois.

Na última terça-feira, as autoridades chinesas perderam a paciência. Os censores não fecharam logo as críticas sobre Chernobyl, mas tornaram a página invisível a qualquer pessoa que não se ligasse com um número de conta.

Avanços e recuos

Apesar de todas as frustrações do público em relação ao seu Governo, afirmam observadores políticos, muitos chineses parecem estar a apoiar a liderança de topo. Na quarta-feira, um órgão estatal denominado The Paper publicou uma sondagem de opinião efectuada a nível nacional que indicava que a maioria dos chineses criticava fortemente a recente actuação dos responsáveis de Wuhan e Hubei, mas continuava a manter um elevado nível de confiança nos líderes governamentais em Pequim.

Dali Yang, especialista em política e governação chinesa na Universidade de Chicago, afirmou que o Governo parecia contentar-se em culpar os responsáveis locais e regionais, desde que as pessoas não questionassem a legitimidade fundamental do partido ou a sua cultura burocrática. E as autoridades parecem estar até a permitir um raro nível de discussão e debate acerca da transparência governamental, continuou Yang.

“Culpar os locais é uma estratégia antiga e bem testada”, declara Yang. De facto, a Internet chinesa encheu-se durante a última semana de utilizadores a ridicularizar abertamente o chefe do partido em Wuhan, o epicentro do vírus, por este se ter atrapalhado a falar quando questionado acerca de quantas máscaras de protecção poderiam ser produzidas.

E após os cidadãos terem largamente condenado as autoridades de Wuhan por terem detido e silenciado médicos que indicavam a existência do novo vírus há já quatro semanas, o principal tribunal da China interveio e repreendeu a polícia local por ter calado quem estava a avisar. “Os boatos terminam quando a informação é tornada pública”, declarou na terça-feira nas redes sociais o normalmente conservador Supremo Tribunal do Povo, que simultaneamente instava os responsáveis em Wuhan a aprender “uma grande lição”.

Numa entrevista na televisão estatal nesta semana, o presidente da Câmara de Wuhan, Zhou Xianwang, mostrou-se disposto a apresentar a sua demissão, afirmando que estava pronto a arcar com as culpas, se isso apaziguasse a cólera popular.

Quando a crise se atenuar, o Partido Comunista deverá afastar um determinado número de funcionários locais, dependendo de quanto as coisas vierem a piorar, diz Tsang, o professor da SOAS. “Vão concluir que o problema não foi tanto a concentração de poder, mas sim uma não suficiente concentração de poder no topo”, continua. “Alguns altos cargos vão ser responsabilizados. E nenhum deles será Xi Jinping.”

* A teoria dos acontecimentos de cisnes negros, desenvolvida por Nassim Nicholas Taleb, é uma metáfora que descreve um evento que surge como uma surpresa, tem grandes consequências e muitas vezes só é correctamente analisado a posteriori.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

Tradução de Eurico Monchique

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