Residência alternada: as reservas e os receios por não vivermos num “mundo ideal”

Mais do que avançar para a definição da residência alternada como regra, é importante investir num real e efectivo apoio às famílias, nomeadamente incrementando as respostas e a utilização da mediação familiar.

O estabelecimento preferencial (como regra) do regime de residência alternada em caso de divórcio ou separação judicial, sem necessidade de acordo mútuo entre os pais, pode traduzir-se numa espécie de aplicação “por defeito” desse regime, o que, em si mesmo, comporta um enorme risco: o de, por facilitismo ou por seguidismo literal, negligenciar as condições, necessidades e contextos específicos de cada família.

E parece-me ser esta a questão de fundo, no que ao regime da residência alternada diz respeito: a consagração da aplicação “cega” de uma medida que, em muitos casos (talvez a maioria), não é adequada às condições, necessidades e contextos familiares, e mais especificamente, às condições, necessidades e contextos das crianças e adolescentes, que passarão a residir alternadamente em casa de ambos os progenitores.

E é absolutamente claro e indiscutível, e está legalmente consagrado, que os filhos têm o direito a ter presentes, na sua vida quotidiana, ambos os seus progenitores, tal como estes têm o direito (e, sobretudo, o dever) de exercer, quotidianamente, a sua parentalidade.

A questão é que o exercício da parentalidade tem de ser, antes de qualquer outra coisa, um exercício de responsabilidade e de cuidado, promotor do equilíbrio, do desenvolvimento e do bem-estar de todos os elementos da família, mas particularmente dos mais jovens: os filhos, crianças e adolescentes, a quem devem ser asseguradas as condições de equilíbrio, segurança e harmonia, que lhes permitirão crescer felizes, integrados, confiantes nos outros e em si próprios. Esta é, em última análise, a nossa grande responsabilidade enquanto pais, sendo responsabilidade do sistema jurídico velar para que tal aconteça.

Mas apesar do facto de esta ser a nossa grande responsabilidade e de a maior parte de nós ter plena consciência disso, a verdade é que nem sempre o conseguimos pôr em prática, por melhores que sejam as nossas intenções.

E isto sucede porque os processos de regulação das responsabilidades parentais, que resultam de divórcio ou separação, tendem a carregar consigo mágoas, ressentimentos, memórias dolorosas e desejos de vingança que interferem com as intenções, os propósitos e os valores que, teórica e genericamente, defendemos como bons.

E sabemos todos que num mundo ideal não deveria ser assim, e que as mágoas da conjugalidade não poderiam sobrepor-se aos interesses e desígnios superiores da parentalidade, mas neste nosso mundo, que é real, isso raramente acontece, e a escalada e cristalização do conflito, muitas vezes exacerbadas pelo próprio processo legal, conduzem a que os filhos se convertam em armas “fáceis” de ataque.

Um ataque que é justificado (hétero e auto-justificado) com o amor e o cuidado, que é sempre “maior e melhor” que o do outro progenitor.

Esse tipo de amor que faz com que a criança, nos dias em que está em casa do pai, não seja autorizada a vestir uma única peça de roupa comprada pela mãe. Ou aquele que faz com que, quando está em casa da mãe, não lhe seja permitido frequentar qualquer actividade em que tenha sido inscrita pelo pai (ainda que ambos tenham “acordado” na frequência dessas actividades).

Ou, ainda, aquele amor que parece necessitar de uma constante validação - uma validação que advém da competição com o amor pelo outro progenitor - e que submete os filhos à necessidade de afirmarem com qual dos dois preferem estar, em casa de qual se sentem melhor, ou, até, qual dos dois é mais competente na satisfação dos seus desejos (que fácil e rapidamente arriscam converter-se em caprichos e em moeda de troca afectiva).

Mas mesmo sem recorrer a estes exemplos, nada incomuns aliás, como sabe qualquer profissional que trabalhe com famílias, e “pouco graves” também, pelo menos quando comparadas com as tristemente frequentes situações de exposição à violência, existem questões ligadas às próprias vivências, logística e rotinas do quotidiano que, podendo parecer de somenos, são de extrema importância para o bom desenvolvimento dos indivíduos, como sejam os rituais familiares (comemorações de datas festivas, por exemplo), os horários, as refeições, ou o lazer...

E a verdade é que, hoje em dia, todas estas vivências e rotinas são muito heterogéneas e variáveis, e a permanente circulação entre quotidianos muito distintos pode ter efeitos negativos, se não forem acauteladas, preservadas e, sobretudo, conciliadas algumas questões essenciais.

Mas é justamente aqui que reside a grande dificuldade: como pedir essa cautela e essa capacidade de conciliação (e, portanto, de cedência) a pessoas dominadas pela mágoa e pela zanga?

Porque para que esta conciliação exista e para que o sistema de residência alternada corra bem e cumpra os propósitos de harmonia, bem-estar e realização de todos os elementos da família, assegurando um “bom” exercício da parentalidade e um adequado, feliz e seguro desenvolvimento das crianças e dos jovens, é necessário que os adultos sejam capazes de chegar a consensos e sejam capazes de uma convivência construtiva o que nem sempre (ou raras vezes) sucede.

Assim, mais do que avançar para a definição da residência alternada como regra, é importante investir num real e efectivo apoio às famílias, nomeadamente incrementando as respostas e a utilização da mediação familiar. Só assim se salvaguardarão as especificidades, a identidade, as necessidades e a autodeterminação de cada família. Porque, afinal, é nessa salvaguarda que deve basear-se relação entre o Estado e as Famílias.

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