O “Brexit”, a geopolítica atlântica e a macrorregião europeia peninsular

Seja qual for a sua natureza, o impacto sistémico da saída do Reino Unido da União Europeia terá sempre muitos efeitos colaterais, mas, neste caso, interessa-nos, sobretudo, os riscos envolvidos na triangulação entre os três vizinhos, o Reino Unido, Portugal e a Espanha, em especial a sua geopolítica e geoeconomia atlânticas.

Já sabemos que a economia-mundo e a integração europeia condicionam muito os graus de liberdade da política interna e, em particular, a expressão material e formal da denominada soberania nacional. Sabemos, também, que o Reino Unido nunca morreu de amores pelo processo de integração europeia tal como ele foi acontecendo e evoluindo.

O futuro acordo que regulará as relações entre o Reino Unido e a União Europeia a partir de 1 de janeiro 2021 é ainda uma incógnita e mesmo a “saída dura”, sem acordo, é uma possibilidade em aberto. Seja qual for a sua natureza, o impacto sistémico da saída do Reino Unido terá sempre muitos efeitos colaterais, mas, neste caso, interessa-nos, sobretudo, os riscos envolvidos na triangulação entre os três vizinhos, o Reino Unido, Portugal e a Espanha, em especial a sua geopolítica e geoeconomia atlânticas.

A posição britânica

Em bom rigor, o Reino Unido nunca foi um membro de pleno direito da União Europeia, basta, para tanto, pensar na moeda única, no espaço Schengen ou no” rebate” orçamental. Sabemos, também, que mais federalismo ou integração política só poderia acelerar o mal-estar europeu dos britânicos. Digamos, ainda, que o espírito da integração europeia ameaçava colidir com o espírito soberanista e o internacionalismo liberal do “império britânico”.

Neste contexto, podemos dizer, para simplificar, que a saída do Reino Unido da União Europeia visa um triplo objetivo, a saber, recuperar o controlo da fronteira, do orçamento e da legislação nacional. Em abono da estratégia britânica podemos, mesmo, dizer que a integração europeia já atingiu um patamar de homogeneidade suficiente entre os países membros e que se trata, agora, de recomeçar, com as mãos livres, a partir desse patamar de integração. Doravante, e com base na política de cooperação, o Reino Unido agirá, em cada momento, segundo o seu próprio interesse, sentido de oportunidade e conveniência política sem estar sujeito ao labirinto institucional da União Europeia.

Em relação ao próximo futuro, digamos que se trata de escolher o nível de contencioso bilateral que as partes estão dispostas a tolerar. Se as partes chegam a acordo em manter o statu quo do acervo comunitário em matéria de mercado único, o nível de contencioso será, porventura, mais contido e comedido. Se as partes acordam em descer esse acervo em benefício do Reino Unido podem levantar-se problemas sérios de concorrência desleal no futuro, mesmo que o acordo preveja mecanismos e regras de arbitragem para o efeito durante um período de transição. Digo isto, porque é possível que, nessa altura da negociação, o Reino Unido já tenha feito valer os argumentos da high politics que sabe que pode capitalizar – segurança, defesa, energia nuclear por contraposição aos argumentos da low politics e ter obtido, por essa via, algum ganho de causa. Importa acrescentar que ao Reino Unido interessa sobremaneira reganhar margem de liberdade na política comercial face a terceiros países e que esse esforço diplomático e comercial ocupará, doravante, uma parte substancial do seu trabalho político.

As nuvens negras que pairam sobre o projeto europeu

As datas já estão afixadas. No dia 31 de janeiro o Reino Unido deixa de ser oficialmente membro da União Europeia e até ao dia 31 de dezembro de 2020 decorrem as negociações visando fixar os termos do futuro relacionamento entre o Reino Unido, país terceiro, e a União Europeia a 27. Entretanto, até ao dia 30 de junho de 2020, as duas partes deverão confirmar que existem as condições políticas para terminar as negociações até ao último dia do ano.

Não vou pronunciar-me sobre os últimos episódios do “Brexit” nem farei qualquer prognóstico sobre os próximos episódios. Em vez disso, prefiro olhar para algumas nuvens negras que pairam sobre o projeto europeu e em relação às quais o “Brexit” é apenas mais um sinal preocupante. Eis alguns tópicos que considero muito relevantes nesta altura para a política de vizinhança dos três países atlânticos.

Em primeiro lugar, a desvalorização geoestratégica das relações transatlânticas: não se trata apenas da saída do Reino Unido, trata-se, também, da “saída dos EUA”, os dois “principais impérios” do mundo ocidental e atlântico; a questão mais relevante é a de saber se está em dúvida a centralidade do mundo atlântico e ocidental ou se se trata apenas de uma conjuntura infeliz associada a maus protagonistas, digamos, uma crise passageira que as próximas eleições americanas irão recolocar na direção certa;

Em segundo lugar, a continentalização do projeto europeu e a maior centralidade da “Europa do Meio”: esta tendência parece irrecusável e a pressão constante que chega do lado leste, quer dos países de Visegrado (Polónia, Hungria, Eslováquia e República Checa) quer da Rússia, Turquia e Médio Oriente, não deixa muito espaço para os “pequenos problemas transatlânticos” do mundo mais desenvolvido;

Em terceiro lugar, a periferização de Portugal no quadro desta desvalorização geoestratégica: se esta má conjuntura se confirmar, a nossa zona económica exclusiva alargada sofrerá imediatamente uma desvalorização ou, então, na melhor das hipóteses, teremos de redefinir, no plano bilateral, a nossa política marítima com os aliados transatlânticos;

Em quarto lugar, a linha vermelha de repartição de recursos escassos entre política interna e política externa: esta relação está numa situação crítica e resulta agravada pela saída do Reino Unido, não apenas por razões orçamentais, mas, sobretudo, por se tratar de um parceiro fundamental em matéria de segurança e relações exteriores; este impasse tem um impressionante efeito de ricochete na política doméstica como é bem visível no caso da política de imigração e refugiados;

Em quinto lugar, a geopolítica europeia em matéria energética não está ainda consolidada: lembremos os fornecedores russos e os gasodutos que alimentam a Europa Central, os países do Médio Oriente, alguns países da África do Norte (Argélia e Líbia), e agora, também, os EUA com os seus xistos betuminosos; entretanto, o pacto ecológico europeu irá modificar não apenas as regras da política energética, mas, também, a sua política de vizinhança; lembremos, apenas, que a Argélia (com problemas internos) abastece a península ibérica de gás através da Espanha e que a Líbia é um enorme problema que cresce todos os dias às portas da União Europeia;

Em sexto lugar, a geopolítica peninsular pode sofrer mudanças significativas: sem o Reino Unido e a marginalização da vertente atlântica a política peninsular pode tornar-se menos melancólica e mais agressiva, em função da situação político-partidária nos dois países ibéricos; por outro lado, eventuais conflitos entre o Reino Unido e a Espanha por causa de Gibraltar podem causar a Portugal alguns embaraços e prejudicar as nossas relações conjuntas, por exemplo, na política mediterrânica e latino-americana;

Em sétimo lugar, a fragmentação do espetro político-partidário: as situações regionais ligadas ao independentismo, ao separatismo e ao autonomismo podem criar graves equívoco; o “Brexit” pode precipitar esta movimentação política com referendos na Escócia e nas duas Irlandas e com repercussões que são difíceis de antever em outros países europeus;

Em oitavo lugar, o mercado único digital e a guerra fria informática e cibernética: os factos recentes anunciam-nos a chegada iminente de uma guerra fria cibernética e, a este propósito, esperamos que a política de relações transatlânticas nos poupe ao espetáculo triste de uma divisão profunda no universo ocidental acerca do cibercrime e da segurança coletiva europeia; a União Europeia joga aqui uma das suas cartas mais importantes para a continuação do projeto europeu.

Estas são algumas das nuvens que pairam sobre a Europa e que, além disso, são acompanhadas por uma desafeição político-emocional do cidadão europeu acerca do projeto de uma União Política Europeia. O baixo crescimento económico e as desigualdades sociais, que empobreceram e radicalizaram uma parte das classes médias, bem como a falta de líderes políticos acreditados, são as faces mais visíveis do problema europeu e o descontentamento nas ruas das capitais europeias é um mau cartão de visita para quem, por exemplo, vai votar pela primeira vez. 

As nuvens negras sobre as relações peninsulares

No contexto acabado de descrever, a triangulação Reino Unido-Portugal-Espanha pode ser uma fonte de problemas e equívocos políticos, sobretudo, se a instabilidade governativa e separatista ficar fortemente polarizada num dos países ibéricos (em Espanha muito provavelmente), em reação a uma radicalização da política doméstica britânica no mesmo sentido. Vejamos, então, a trajetória deste magno problema.

Como já disse, até ao final do ano de 2020 decorrem as negociações entre a União Europeia e o Reino Unido com vista a um acordo de relacionamento futuro. Até ao final deste ano, portanto, podemos ter um acordo satisfatório para ambas as partes, um mau acordo conseguido in extremis no dia 31 de dezembro, um não-acordo por vontade expressa britânica ou, ainda, uma dilação das negociações para um momento posterior.

Assim sendo, mesmo no contexto mais favorável, um acordo de saída até 31 de dezembro, podem irromper alguns acontecimentos menos agradáveis por razões que se prendem com a obtenção de vantagens futuras no relacionamento com o Reino Unido. A insistência na “relação histórica especial” entre Portugal e o Reino Unido pode não ser bem recebida pela Espanha e por um efeito de ricochete “problemas menores” que permanecem, como Almaraz, os transvases, a poluição dos rios, a jurisdição de algumas ilhas, mesmo o estatuto de algumas cidades de fronteira, podem regressar inopinadamente. Já para não falar de alguns fluxos turísticos, dos aeroportos que servem “os dois algarves”, ou até de alguns benefícios preferenciais para atrair a sede de empresas que saem do Reino Unido por causa do “Brexit”.

A normalidade das relações peninsulares é, geralmente, aferida por laços cordiais de boa vizinhança institucional e até de amizade pessoal entre os respetivos responsáveis político-partidários, para lá, evidentemente, das boas relações económicas e empresariais no quadro do mercado único e da União Europeia. Mas a “pós-normalidade” também afetará, tarde ou cedo, as relações peninsulares. Estou convencido de que não se deve subestimar esta eventualidade, ou seja, a ocorrência de um ou mais “cisnes negros” deveria preocupar as entidades e instituições peninsulares e uma espécie de mecanismo de alerta preventivo poderia e deveria acautelar esta eventualidade tendo em vista evitar males maiores no próximo futuro. O risco moral está por todo o lado, os danos colaterais também. Eis alguns exemplos desta pós-normalidade que podem irromper em qualquer altura:

  • A central nuclear de Almaraz e os problemas de contaminação junto à fronteira portuguesa,
  • Os transvases nos rios peninsulares e as “guerras da água” para o século XXI, pois, como sabemos, a Península Ibérica será especialmente atingida pelos efeitos das alterações climáticas, muito em especial os períodos de seca severa,
  • Alterações logísticas e operacionais na abordagem NATO da política transatlântica, devido à saída do Reino Unido, podem implicar uma outra reafectação de meios nesta matéria, por exemplo, uma mudança na estrutura de comandos territoriais na Europa que  poderá ocasionar algum mal-estar no relacionamento peninsular face àquilo que tem sido o lastro histórico do nosso relacionamento no quadro da OTAN onde se incluem, também, as missões atribuídas ao nosso território insular,
  • A projeção das águas territoriais e os conflitos de jurisdição daí decorrentes, assim como a revisão dos limites das zonas económicas exclusivas pedidas pelos dois países ibéricos e a consideração do papel essencial desempenhado pelos territórios insulares dos dois países, podem estar na origem de alguns equívocos político-diplomáticos de alguma relevância; neste particular, o simbolismo político-diplomático em redor da jurisdição das Ilhas Desertas ou Selvagens é bem a prova de que uma eventual “colisão” destas duas projeções territoriais deve ser abordada e tratada com extremo cuidado para evitar males maiores,
  • Os choques assimétricos no sector do turismo podem ocasionar, imediatamente, fluxos erráticos e contingentes de visitação turística no interior do espaço peninsular, por exemplo: a falta crónica de água em zonas turísticas, um grave acidente nuclear em Espanha, a poluição dos rios e das rias, um derrame petrolífero ao largo da costa, um fluxo repentino de refugiados, um grave conflito político-diplomático em redor de Gibraltar, um acontecimento grave decorrente de um ato de terrorismo, a radicalização de movimentos sociais associada a movimentos separatistas e independentistas; todos estes eventos são possíveis e alguns podem estar mesmo encadeados se não forem abordados a tempo e horas,
  • A estabilidade política no espaço magrebino é um bem comum extraordinariamente precioso para a estabilidade das relações peninsulares; o alinhamento dos problemas relacionados com a jurisdição territorial sobre Gibraltar, Ceuta e Melilla faz parte do mesmo xadrez geoestratégico e deveria ser abordado com extrema cautela para não repetir no mediterrâneo ocidental aquilo que já acontece no mediterrâneo oriental, pelo que os dois países peninsulares deveriam unir esforços nos planos bilateral e multilateral e no quadro da União Europeia para abordar de forma preventiva e cautelar os problemas do mediterrâneo ocidental que não deixarão de surgir,
  • O iberismo, a radicalização política e o separatismo regionalista podem escalar rapidamente com os acontecimentos no interior do Reino Unido; o eventual desmembramento territorial do Reino Unido seria um verdadeiro terramoto político, de consequências imprevisíveis sobre o sistema político-partidário europeu e os movimentos separatistas europeus, pois assistiríamos a alianças e coligações hoje improváveis e não me surpreenderia que, ao lado do separatismo regionalista catalão, basco e galego surgissem correntes unionistas iberistas no quadro da União Europeia reclamando maior protagonismo para as “macrorregiões europeias transnacionais”, como, de resto, a própria União Europeia já sugeriu,
  • As negociações do “Brexit” e o seu impacto específico nas relações peninsulares; estou sobretudo a pensar nas opções que algumas empresas multinacionais com sede fiscal no Reino Unido poderão adotar e na “guerra de incentivos” de toda a ordem para atrair essas empresas para o território peninsular; a centralidade madrilena e a velha relação histórica do Reino Unido com Portugal poderiam entrar em rota de colisão; neste particular, o Atlântico não será mais, tudo leva a crer, um oceano pacifico como até aqui e, no resto, a gestão de expetativas em redor do novo presidente americano eleito em novembro de 2020 será o “grande cisne negro” das relações transatlânticas.

A reafirmação e estruturação da nossa dimensão atlântica

Tudo o que disse anteriormente vai obrigar-nos a dedicar uma atenção especial às relações transatlânticas ao longo do ano de 2020. É bom não esquecer as nossas dimensões atlânticas permanentes: o mar português, a relação histórica com o Reino Unido e os EUA, a dimensão europeia e peninsular, a dimensão defesa e segurança no quadro OTAN, a dimensão língua portuguesa, a dimensão diáspora portuguesa, a dimensão economia mundo do espaço transatlântico e ocidental, a dimensão multilateral de uma pequena economia aberta e de um Estado-exíguo.

No futuro próximo, como sempre, de resto, a aventura portuguesa joga-se em dois grandes ciclos geoestratégicos: o ciclo atlântico da maritimidade em direção aos EUA/Canadá, Brasil/América Latina e Africa/PALOP e o ciclo europeu da continentalidade em direção à Ibéria, ao Euro-mediterrâneo e à Euro-ásia. O alargamento, em curso, da zona económica exclusiva de Portugal está bem no centro deste duplo ciclo geoestratégico e justifica, só por si, esta mudança de orientação, se quisermos, o rescaling territorial do espaço português.

Enquanto global-player nestes dois grandes ciclos geoestratégicos, onde a geogovernança portuguesa readquire todo o seu significado, a grande incógnita é a de saber se Portugal “se conseguirá libertar” da Espanha para realizar esta aventura, isto é, se é capaz de levar a cabo esta aventura por sua conta e risco. E se não conseguir, ou se ficar prisioneira dela, qual o refluxo dessa parceria sobre a integração interna da própria economia ibérica, em especial, numa circunstância económica de abrandamento ou estagnação da economia peninsular. Como é evidente, não é fácil descobrir esse lugar geométrico de tantos destinos e parece quase impossível encontrá-los sem a presença da Espanha ou sem a presença da “macrorregião peninsular e europeia”. Nada nos liberta da contingência e todas as possibilidades continuam em aberto, seja por conta própria ou em parceria euro-peninsular.

Vejamos algumas dessas possibilidades ainda em aberto:

  • A plataforma de um corredor transatlântico: cenário MacPortugal.  

Neste cenário, seríamos um país transformado em corredor transatlântico e em situação de “duplo franchise” europeu e americano, administrado, eventualmente, por parcerias de gestão luso-espanholas do “mundo dos negócios”, uma espécie de MacPortugal baseado maioritariamente na indústria do turismo;

  • A formação de uma parceria ibérica transatlântica: cenário União Peninsular.

Este cenário pressupõe um entendimento bilateral global, nos planos político e empresarial, para uma ação conjunta, concertada, nos dois ciclos geoestratégicos referidos, em simultâneo com a reorganização profunda da economia ibérica que aproveitaria a logística ibero-mediterrânica, ibero-americana e ibero-africana para ganhar escala e profundidade; a união peninsular ou a macrorregião europeia peninsular seria apoiada por vários parceiros nesses espaços de desenvolvimento e cooperação e esse esforço seria, seguramente, apoiado pela União Europeia com entusiasmo.

Entre estes dois cenários principais, mais acidental, o primeiro, mais estruturado, o segundo, existem ainda algumas variações de importância mais curta ou mais parcelar:  

  • A formação de uma plataforma luso-brasileira: cenário Luso-Brasileiro.

Neste cenário, recentrado sobre a comunidade dos países de língua oficial portuguesa, a parceria luso-brasileira seria a alavanca principal, sendo Portugal o mediador “oficial” para introduzir a Espanha na CPLP;

  • A formação de uma plataforma ibero-mediterrânica: cenário MEDOC.

Neste cenário, recentrado sobre a margem sul do mediterrânico, e em especial sobre o mediterrâneo ocidental, a península ibérica seria o parceiro acreditado do “mundo ocidental” para esta sub-região;

  • A formação de uma plataforma ibero-americana: cenário União Latina.

Neste cenário, recentrado sobre a América Latina e o Mercosul, a península ibérica seria o parceiro acreditado e o veículo da União Europeia para uma cooperação privilegiada com aquela zona do globo.

 No terreno geoestratégico que procurámos delimitar parece indubitável que os nossos parceiros de sempre – Reino Unido, Brasil, Angola, Espanha – não se encontram nas melhores condições políticas internas para realizar connosco parcerias muito prometedoras e estruturadas. Por outro lado, Portugal, por limitações próprias, não parece ter capacidade para sozinho ser um global-player no grande espaço transatlântico. A este facto, acresce a eventualidade de a Espanha se desinteressar do espaço ibérico, dada a exiguidade do nosso próprio mercado, para se aproximar de outros mercados em crescimento, que lhe trarão benefícios acrescentados superiores aos da parceria ibérica. Não é demais recordar que Portugal é para Espanha, essencialmente, uma extensão comercial e, mais raramente, uma hipótese de localização produtiva.

Tudo somado, o mais provável é que não existam estratégias e parcerias de desenvolvimento ibérico e peninsular, pelo menos a curto e médio prazo, mas, antes, movimentos empresariais de participações, alianças e consórcios, fusões e concentrações, de certa forma, a anarquia madura que caracteriza o capitalismo atual.

Notas Finais

Aqui chegados, o ano de 2020 é um tempo crucial para reavaliar as nossas opções no plano geoestratégico, geopolítico e geoeconómico. Com se percebe, em quase todos os cenários referidos, as ausências e omissões da União Europeia, mas, também, as interrogações sobre a política transatlântica, estão na origem e na primeira linha dos problemas encontrados. Esta é, pois, a “pós-normalidade” das relações peninsulares. Não sabemos ao certo se acontecerão, quando acontecerão, como acontecerão e quem as fará acontecer. Seja como for, e para tranquilizar os mais sobressaltados, lembro aqui o grande mérito das instituições europeias, qual seja, o de lidar com processos e procedimentos que transformam problemas graves em problemas crónicos. Nos tempos que correm não é de somenos importância.

Em jeito de síntese final, ficam aqui os principais fatores que podem condicionar as relações futuras de Portugal no plano europeu e transatlântico:

  • A estabilidade política do diretório franco-alemão não está garantida, se pensarmos no período pós-Merkel e na polarização política que se seguirá,
  • A posição comum e a união dos 27 face ao Reino Unido não estão garantidas, a teoria do precedente é um “ausente sempre presente”,
  • A negociação do acordo com o Reino Unido faz-se num ambiente politicamente saturado, pois coincide com discussões em redor do Quadro Financeiro Plurianual, da capacidade orçamental específica para a zona euro e do financiamento do Pacto Verde Europeu,
  • A desvalorização geoestratégica do espaço transatlântico retira importância geopolítica ao espaço peninsular e a península ibérica como macrorregião europeia privilegiada de cooperação e porta de entrada da União Europeia fica, muito provavelmente, em compasso de espera; as consequências deste compasso de espera repercutem-se sobre as frentes ibero-mediterrânica, ibero-americana e ibero-africana e, bem assim, na sua requalificação geoeconómica e geopolítica,
  • A polarização político-partidária nos nossos principais parceiros e a radicalização dos movimentos sociais respetivos não nos autorizam a grandes cenários cooperativos, o Reino Unido e a Espanha estarão muito mais preocupados com os problemas internos e a sua política doméstica,
  • O abrandamento económico da economia peninsular, a Espanha em especial, não consente grandes aventuras e a situação do sistema bancário e financeiro também não nos dá garantias para grandes aventuras geoestratégicas nesta matéria,
  • As redes transeuropeias, as macrorregiões europeias, o policentrismo da política de coesão, não parecem estar no horizonte desta “união política europeia” tão minimalista e tão curta de recursos próprios.

Disto isto, seria no mínimo surpreendente que a porta de entrada para a Europa continental fosse levada a cabo na fronteira europeia peninsular através de investimentos chineses nas águas e nos portos ibéricos, no remate da “nova grande rota da seda”. Tratando-se de um território fronteiriço da União Europeia, não é politicamente aceitável, no mínimo, que essa fronteira, apontada ao mar alto e na confluência do corredor transatlântico, seja uma estreita porta de entrada ou de saída para o Atlântico Sul, servida por infraestruturas e equipamentos sem profundidade logística e económica. É, também, nesta direção que deve ser explorado o novo quadro político de responsabilidades territoriais da União Europeia a 27, se aceitarmos que o acréscimo da expressão “coesão territorial” encerra, verdadeiramente, um significado político irrecusável. Ser ou não ser peninsular e macrorregião europeia, eis a questão.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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