A “Marianne” do PS: uma presidente nova para problemas velhos

O PS nunca faltou ao país nos seus momentos de maior crise política. Oferecer candidatos a fingir será prestar um favor ao extremismo político antidemocrático.

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Miguel Manso

O apoio a uma candidatura de Ana Gomes à Presidência da República deve merecer séria consideração pelos órgãos do Partido Socialista, por três razões: reposiciona o Partido na liderança da eterna causa da ética republicana; estabelece uma nova síntese política de centro-esquerda, de “características portuguesas”, como antídoto ao pior do capitalismo financeiro desregulado e gerador de desigualdades; oferece uma alternativa democrática relevante nas próximas eleições presidenciais.

No essencial, a ética republicana liga o patriotismo e a soberania democrática aos valores da liberdade e da igualdade perante a República. No plano individual, tal traduz-se em exigências de coragem e de devoção à causa pública. O Partido Socialista tem a sua histórica liderança na causa da ética republicana ameaçada ou, pelo menos, questionada. Uma inevitabilidade, quando destacados militantes se envolvem em processos judiciais de corrupção. Uma inabilidade, quando não compreende os malefícios da endogamia política. Um desafio existencial, quando se prepara para atingir em 2023 um total de 21 anos de governação durante os últimos 30 anos.

Neste contexto, o combate à corrupção assume uma centralidade rara. Infelizmente, alguns dos sinais dados pela atual governação são ainda contraditórios e inconsistentes. Sinalizou-se alguma acção com uma nova comissão sobre corrupção. Mas é apenas mais uma comissão, para produzir mais leis, a partir da lente única e tradicional das faculdades de direito – um modelo esgotado, que falhará.

As contradições continuaram quando, no mesmo país, e no período de apenas 30 dias, o Governo português não assegurou representação governativa na Conferência da ONU contra a Corrupção, em Abu Dhabi, mas esteve com pompa e circunstância, com primeiro-ministro e outros membros do Governo, a “vender a imagem do país” na Expo 2020, no Dubai (considerado pela Transparência Internacional como “o paraíso da lavagem de dinheiro”). Poucos dias depois, sabe-se que Portugal piora no ranking internacional sobre percepções de corrupção relativo a 2019, na mesma semana em que se conhece o escândalo internacional Luanda Leaks, com epicentro em Lisboa.

Tudo parece contribuir para um caldo de cultura cada vez mais perigoso e propício a radicalismos políticos que dificilmente desaparecerão com meras indignações institucionais sobre o uso da palavra “vergonha”.

Talvez nos reste a esperança de, em breve, podermos ter um adolescente numa qualquer escola a iniciar uma greve às quintas-feiras pelo combate à corrupção. Já faltou mais para que os jovens compreendam como a necessidade de combater a corrupção é tão existencial como a qualidade do ar que respiram. Por gerar a desigualdade a que as suas famílias são condenadas no acesso à habitação, à educação de qualidade, aos cuidados de saúde ou à dignidade laboral.

Consabidamente, o centro-esquerda tem tido dificuldades em se reinventar num mundo mais globalizado e complexo. Tendo governado em Portugal imediatamente antes do início do último programa de assistência financeira, e imediatamente após a sua conclusão, assumiu sempre que esse programa foi em grande medida ditado por regras intransigentes, e inevitáveis, do globalismo financeiro. Um globalismo que se tem mostrado mais intolerante perante Estados democráticos do que perante cleptocratas e ditadores. Em estado de necessidade, e perante o abandono económico-financeiro, mas não político, do Norte da Europa, o país “vendeu-se”, porque necessitava de novos fluxos financeiros. Viessem eles do petróleo venezuelano, do “socialismo com características chinesas” ou da “nossa” Angola. O centro-esquerda português tem, portanto, trabalho a fazer na recuperação de uma autoridade moral indispensável à defesa dos interesses nacionais nos debates europeus sobre a desigualdade e sobre a regulação financeira e fiscal transnacionais.

A tudo isto acresce a circunstância de termos um presidente da República datado e anacrónico. O último político do tempo da “velha senhora” ainda no ativo. Marcelo representa a velha ordem, do tempo em que as ligações à família Espírito Santo eram vistas como estratégicas em qualquer projecto de poder de quem nasceu, cresceu e sempre viveu do e para o poder. Marcelo já cumpriu a sua função – embora pouco se retenha do seu mandato, para além de efémeros abraços, do lixo digital das selfies e da qualificação da cooperação judiciária entre dois países soberanos como um “irritante”. Deve retirar-se para que dê um sinal importante ao país: é necessário acelerar a transição geracional que permita a quadros mais jovens assumirem mais responsabilidades nas associações, nas empresas, nas universidades, na Justiça e na política. Aos 72 anos em 2021, seria o protagonista de um virar de página que a sua geração deve ao país.

Há, neste quadro, e perante umas eleições presidenciais que se dão como perdidas, uma obrigação moral de oferecer ao país uma alternativa democrática. Sobretudo em tempos de descrédito do sistema democrático, um pouco por todo o mundo. O PS nunca faltou ao país nos seus momentos de maior crise política. E tem aqui mais uma oportunidade de ouro para ajudar a fortalecer o desenvolvimento e a democracia de Portugal. Oferecer candidatos a fingir será prestar um favor ao extremismo político antidemocrático.

O populismo radical da ética republicana é o melhor antídoto para se combater os vírus do populismo inconsequente e inócuo dos afetos, de Marcelo, e do populismo irracional dos medos, de André Ventura.

Em plena presidência da União Europeia (primeiro semestre de 2021), nada “venderia” melhor a imagem do país ao mundo do que a eleição de uma mulher, Ana Maria Gomes, para a Presidência da República Portuguesa. Uma mulher que não faltou aos combates mais difíceis dos últimos anos. Uma mulher que se notabilizou em toda a Europa na denúncia da corrupção e dos abusos do capitalismo financeiro. Uma mulher que desempenhou um papel fulcral na última grande congregação moral do país, a causa de Timor-Leste.

João Ribeiro investiga na Universidade de Cambridge o papel dos diplomatas na negociação de tratados internacionais e respectivas questões de legitimidade. Foi director do Centro Regional Ásia-Pacífico da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (2013-2018). Em 2020 e 2021 publicará, respectivamente, os livros “A cunha como conduta social – as figuras que as pessoas fazem” e “Ensaio sobre o compadrio em Portugal”. jmt90@cam.ac.uk

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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