Jornalista norte-americana afastada de viagem oficial após entrevista tensa a Mike Pompeo

Associação dos Correspondentes no Departamento de Estado diz que a decisão é “inaceitável” e foi tomada como “retaliação” após uma entrevista feita por outra jornalista da National Public Radio.

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Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano Reuters/Tom Brenner

O Departamento de Estado, o equivalente nos Estados Unidos ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, retirou uma repórter da National Public Radio (NPR) da lista de jornalistas que vão acompanhar o secretário de Estado, Mike Pompeo, numa visita à Europa e à Ásia Central, que inclui uma paragem na Ucrânia. Num comunicado, uma associação de jornalistas norte-americanos acusou Pompeo de querer vingar-se de uma outra repórter da NPR, a quem o secretário de Estado pediu para assinalar a Ucrânia num mapa.

A jornalista que foi afastada da viagem com Pompeo, Michele Kelemen, está na NPR desde 1998 e segue de perto a política externa norte-americana. Nas últimas duas décadas acompanhou todos os secretários de Estado em visitas oficiais, desde Colin Powell a Mike Pompeo.

Na sexta-feira, uma colega de Kelemen na NPR, Mary Louise Kelly, tinha entrevistado Pompeo sobre a política da Administração Trump em relação ao Irão e à Ucrânia, numa conversa muito tensa.

Questionado sobre se deve um pedido de desculpas a Marie Iovanovitch, a antiga embaixadora norte-americana em Kiev que foi afastada pelo Presidente Donald Trump em Maio de 2019, Pompeo começou por responder que não tinha “mais nada a dizer sobre esse assunto”. A jornalista insistiu na questão, recordando que um dos conselheiros de Pompeo no Departamento de Estado, Michael McKinley, se tinha demitido do cargo, em Outubro, queixando-se de falta de apoio à embaixadora Iovanovitch.

Dias depois, McKinley prestou depoimento perante a Câmara dos Representantes no processo de impugnação de mandato do Presidente Trump. E disse, sob juramento, que se sentiu “perturbado” com “a implicação de que um Governo estrangeiro estava a ser sondado para obter informações negativas sobre um adversário político” do Presidente Trump.

“Não vou comentar coisas que o sr. McKinley pode ter dito”, respondeu Mike Pompeo na entrevista de sexta-feira. “Só vou dizer isto: eu defendi cada um dos responsáveis do Departamento de Estado.”

Mas a jornalista da NPR não mudou de assunto, e voltou a perguntar ao secretário de Estado se defendeu Marie Iovanovitch – e, se a defendeu, onde podia ser lida essa declaração. Em resposta, Pompeo disse que não tinha mais nada a acrescentar sobre o caso de Iovanovitch, e disse que só tinha aceitado ser entrevistado para falar sobre o Irão. Mais tarde, numa reacção à forma como a entrevista decorreu, a jornalista disse que informara a equipa de Pompeo de que ia fazer perguntas sobre a Ucrânia.

A Ucrânia no mapa

Segundo Mary Louise Kelly, o que aconteceu depois da entrevista confirmou que Pompeo não tinha ficado contente com as perguntas. A jornalista diz que foi chamada para uma sala, onde a aguardava o secretário de Estado, e que lhe foi dito para deixar para trás o gravador. Lá dentro, Kelly diz que Pompeo lhe perguntou se sabia assinalar a Ucrânia num mapa.

“Ele pediu aos funcionários para trazerem um mapa sem os nomes dos países assinalados”, disse a jornalista. “Eu assinalei a Ucrânia e ele guardou o mapa.”

Apesar de lhe ter sido pedido para entrar na sala sem o gravador, Mary Louise Kelly disse que ninguém lhe pediu explicitamente para manter a conversa em “off”. “Ele perguntou-me se eu achava que os americanos queriam saber da Ucrânia. E usou a palavra começada por ‘f’ nessa frase e em muitas outras frases.”

Jornalista “mentiu duas vezes"

No sábado, o Departamento de Estado publicou um comunicado no seu site em que Mike Pompeo acusa a jornalista da NPR de lhe ter mentido duas vezes. “Primeiro, no mês passado, quando a nossa entrevista estava a ser preparada, e depois, ontem [sexta-feira], quando concordou em manter a nossa conversa pós-entrevista em off the record”, disse o secretário de Estado norte-americano.

“É vergonhoso que esta repórter tenha violado as regras básicas do jornalismo e da decência. É mais um exemplo de quão transtornados andam os media na sua campanha para prejudicar o Presidente Trump e esta Administração”, disse Pompeo, num comunicado que termina com uma referência ao teste do mapa, que desmente a versão de Mary Louise Kelly: “É de notar que o Bangladesh NÃO É a Ucrânia.”

Com esta última frase, Pompeo sugere que a jornalista –​ formada em Estudos Europeus na Universidade de Cambridge, conferencista em Harvard e Stanford, responsável por um curso de segurança nacional e jornalismo em Georgetown, e cujo trabalho a levou a visitar países em todo o mundo – não sabe onde fica a Ucrânia num mapa. E que confundiu o país situado na Europa de Leste, na fronteira com a Rússia, com o Bangladesh, a quase 6000 quilómetros de distância, no Sul da Ásia, na fronteira com a Índia.

A reacção de Pompeo foi criticada por um dos seus admiradores confessos, o britânico Steve Hilton, que apresenta um programa na Fox News. “Por amor de Deus, sr. secretário, não seja tão infantil. Você já devia ser capaz de responder a perguntas difíceis”, disse Hilton, um crítico do processo para a destituição do Presidente Trump.

Em comunicado, a Associação dos Correspondentes no Departamento de Estado disse que só havia uma conclusão possível para a retirada da jornalista Michele Kelemen da viagem oficial com Mike Pompeo: “Só podemos concluir que o Departamento de Estado está a retaliar contra a National Public Radio.”

Numa reacção em que elogia o Departamento de Estado norte-americano por “defender jornalistas em todo o mundo de forma corajosa”, a associação considera “inaceitável a punição de um membro individual” e pede que a decisão de afastar Kelemen seja “revista”.

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