“Brexit”: quando o dia 31 chegar

Quando o dia 31 chegar, o dia 31 não vai chegar, vou fechar os olhos e bater os calcanhares um contra o outro para abrir os olhos e desejar nunca ter podido ver.

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Reuters/YVES HERMAN

A sério, ainda me debrucei a ler, ainda procurei informar-me, mas entretanto deu-me o sono, epá, para quê, é tão chato, e como isto não é para ler mas para sentir, aqui vai.

Quando o dia 31 chegar, o dia 31 não vai chegar, vai andar para trás, para trás não, para a frente, para onde deve ser, de volta às pessoas, de volta à diversidade e multiculturalidade, de volta à aceitação e à diferença, de volta a Londres e aos Jogos Olímpicos, à festa de portas abertas, de volta às oportunidades, à cultura do mérito, ao trabalho e à descoberta, as surpresas e as conquistas todas as semanas, de volta ao sucesso mais a libra a 300 escudos, de volta às viagens e às férias, em Portugal e no estrangeiro, mas se vivemos no estrangeiro estamos sempre de férias, às vezes parece, olhar pela janela e dizer uma asneira, vivemos em Londres, e sentir a euforia, metade da gente que a gente conhece daria um braço para estar aqui, e no entanto não estão, vão deixar de estar, vão deixar de vir, já deixaram de vir, de pouco interessa se depois de dia 31 fica tudo na mesma por mais um ano, ninguém sabe, ninguém quer saber, só vão saber que saímos da União e portanto saímos, já não fazemos parte, já não somos parte, nunca fomos, basta olhar para o mapa, é uma ilha, sim, é mesmo uma ilha, mas não, olha que tem um túnel, qual túnel, o túnel não se vê e portanto é uma ilha, não há pontes nem concórdias, nunca houve, estiveram sempre com um pé fora e nem por isso dentro, foi só enquanto lhes deu jeito de modos que eu já não sei, acordo de manhã e c’um caneco, que alívio, ao menos agora já sabemos para onde vamos, mesmo que seja contra a parede, farto de cabeçadas já estou eu pelo que mais uma não vai doer, mas vai, talvez doa, talvez a gente aprenda, talvez eles aprendam e eu já não sei de que lado estou, com um pé fora e outro dentro, o coração em Portugal e a vida toda em Inglaterra e entretanto já me calei e não digo nada, já não defendo os trabalhadores e já não ataco à direita que esta malta já decidiu e já decidiu em força e estão todos do mesmo lado e por isso o melhor é estar calado.

Entretanto já sabemos para onde vamos, vamos para a frente mas nem por isso para o desconhecido, daqui a seis meses o Big Ben já não vai ser o Big Ben, vai ser a Torre Macdonald’s, os museus vão ser vendidos para peças em prol de meia dúzia de endinheirados e os hospitais privatizados, para já não falar da polícia e do exército, comprados ao melhor preço que a educação também já lá vai, corrupção, qual corrupção se tenho os bolsos forrados a dinheiro e acções, que me importa, a minha casa valoriza a olhos vistos e a rua está cheia de famílias sem casa, alguns são meus alunos, falo com os pais ou nem por isso, vemo-nos lá na escola e sigo a minha vida, o inglês comum a trabalhar 16 horas por dia abaixo do ordenado mínimo, qual ordenado mínimo, isso era antes, o trabalho à jorna, não queriam voltar atrás, pois aqui estamos nós e eu calado, calado não, mudo, rouco de tanto pregar aos peixes, os peixes não têm ouvidos, mas têm, têm ouvidos para o mar, para as ondas e o temperamento dos oceanos, nem por isso para os seres humanos, em suma estão-se nas tintas, mortos e bem mortos ainda a saltar na rede mas nas tintas, como o choco, nem sequer sabem o que lhes aconteceu e os ingleses também não, os ingleses são peixes, os ingleses são chocos, os ingleses são surdos, só ouvem as ondas até que o mar os mata na rede.

Nem sabem o que lhes aconteceu.

Mas nós sabemos. Já vimos este filme. E por isso aqui estamos. E não queremos passar pelo mesmo outra vez.

E talvez por uma questão genética, por uma questão de protecção, sobrevivência, compaixão, amor, porque aqui construímos uma vida e nem tudo é mau, sim, já vimos muita estupidez e talvez o primeiro mundo não seja aqui, talvez o primeiro mundo seja um bocadinho ao lado, mas Londres ainda é Londres e nós gostamos disto e destas gentes parolas, temos pena deles, são como nós, só querem ter uma vida melhor mas fazem tudo ao contrário, e por isso não deixámos de acenar e gritar, não vão por aí, vejam o nosso país, 600 mil filhos, pais, avós, irmãos e irmãs sem 600 mil filhos, pais, avós, irmãos e irmãs em 10 anos mais a “troika” e o raio que os parta, não saiam, mudem por dentro, lutem por dentro, não saiam, não fujam do problema, mas já saíram e o problema ainda aqui, mas agora sós numa ilha à deriva.

Quando o dia 31 chegar, o dia 31 não vai chegar, vou fechar os olhos e bater os calcanhares um contra o outro para abrir os olhos e desejar nunca ter podido ver.

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