A crueldade perdoada por Maria Stuarda

Uma encenação quase de câmara para uma Maria Stuarda que revela a música imparável (apesar das hesitações) de Gaetano Donizetti. Com um bom trabalho do coro e da orquestra e a presença de uma Maria Stuarda excepcional: Ekaterina Bakanova.

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Maria Stuarda, no São Carlos ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Era famosa em Itália, na primeira metade do século XIX, a peça de teatro de Friedrich Schiller, Maria Stuart, escrita em 1800. Não era preciso explicar ao público italiano em 1835, data da estreia desta ópera, quem era Maria Stuart, a “rainha dos escoceses”, acusada de participar num conluio para tomar o trono de Inglaterra e condenada à decapitação. Ela ficou famosa, muito graças a Schiller, como rainha injustiçada, mito da resistência à tirania e à violência contra os católicos na Inglaterra do século XVI.

Donizetti compôs uma ópera quase “de câmara” baseada na peça de Schiller, com enormes cortes, alterações e simplificações, com o auxílio do muito jovem libretista Giuseppe Baldari. Apesar de restarem algumas alusões à trama política da peça (que fica apenas vago pano de fundo), as razões de Estado tornam-se sobretudo “razões do coração” que, como é sabido, são pouco razoáveis: ciúme, vingança, ódio, paixões insensatas, esperanças infundadas, tudo isso percorre a ópera Maria Stuarda de uma ponta à outra.

Ópera onde duas rainhas competem pelo trono... e pelo papel principal: Elisabetta é a tirana hesitante, que até ao último momento duvida se deve ou não condenar Maria à decapitação. Maria, orgulhosa e sedutora, tem menos ódio e mais piedade no coração, mas é incapaz de se submeter docilmente a Elisabetta, que acusa no final do primeiro acto de ser “filha impura de Bolena”, “meretriz indigna e obscena” e “vil bastarda”. A partir desta acusação violenta, que Donizetti sublinha musical e vocalmente, Maria não tem outra saída a não ser a condenação à morte, depois de muitos anos de cativeiro em Inglaterra.

Gaetano Donizetti escreveu mais de 70 óperas em menos de 30 anos. E a sua habilidade musical é bem evidente em Maria Stuarda, onde tenta levar a limites novos alguns recursos que já tinha experimentado em óperas anteriores. A Orquestra Sinfónica Portuguesa deu bem conta do recado. Embora quase estática narrativamente (quase nada acontece para além do adiamento da decisão de Elisabetta), a ópera tem um ritmo musical muito intenso, com árias que exigem grande fôlego. Alessandra Volpe (Elisabetta) não começou bem e parecia faltar-lhe ar para tanta energia vocal dispendida em cavatinas e cabalettas. A mezzo-soprano tremeu e desafinou nas cenas iniciais, mas depois conseguiu erigir a “maldade vocal” da crueldade e terminou mesmo o primeiro acto com excelentes momentos (mas terríveis!) no confronto com Maria Stuarda e, mais tarde, quase solitária, duvidando ainda do seu gesto de vingança. No papel de Maria esteve a espectacular soprano Ekaterina Bakanova, que foi capaz de dar todas as voltas vocais ao desespero e fez as famosas palavras acusatórias soarem violentamente no Teatro (palavras que foram censuradas em Itália no tempo da sua estreia, embora a soprano Maria Malibran as tenha cantado na mesma, desafiando a censura).

Maria arrepende-se dos seus pecados e tem ainda força para perdoar tudo e todos, até a crueldade de Elisabetta. É essa a sua força e a sua vitória (moral), apesar de lhe cortarem mesmo a cabeça. Mas era preciso uma cantora como Bakanova para revelar tudo isso brilhantemente através da música. Para além do excelente trabalho de Luís Rodrigues, Christian Luján e de Rita Marques (secundários importantes que auxiliam em duetos as figuras principais), há que destacar o tenor Leonardo Cortelazzi no papel de Leicester, que deu enorme pujança e ímpeto às esperanças vãs e ingénuas da personagem, com um belo timbre e acerto rítmico para este Leicester dividido.

É na busca da tensão máxima (nunca resolvida, como se tivesse as mesmas dúvidas que a rainha inglesa) que Donizetti se empenha, até à “humilde oração” da cena final com Maria Stuarda. Mas a música quase não deixa o encenador fazer mais do que submeter-se a ela. Apesar de tudo, a encenação inteligente e discreta de Andrea de Rosa e o belo cenário de Sergio Tramonti fazem desta Maria Stuarda uma produção com pés e cabeça. Só num momento parece haver um equívoco: Leicester, por muito ingénuo que seja, já não pode estar de joelhos quando acusa Elisabetta de crueldade e ela, num acto de prazer mórbido e perverso, lhe diz que quer que ele assista à decapitação de Maria. Uma objecção de detalhe para uma encenação muito bem conseguida na sua globalidade. As luzes de Pasquale Mari recortam por vezes à la Rembrandt faces nas sombras, e deixam entrar uma bela luz no pátio de Fotheringay, onde Stuart está presa. Neste caso não há saída para Maria, a não ser para cima – para o céu.

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