Porquê Ana Gomes

Num momento em que o país precisa de um sobressalto cívico-moral a sua candidatura presidencial constitui um verdadeiro imperativo categórico.

Há uns dias, no contexto de um debate que realizo semanalmente com o eurodeputado Paulo Rangel na Rádio Renascença, num momento em que discutíamos o caso Luanda Leaks, pronunciei-me en passant sobre as virtualidades de uma hipotética candidatura presidencial de Ana Gomes. Esse comentário, apesar de induzido pelo tema em apreciação, corresponde a uma convicção que tenho vindo a sedimentar desde há alguns meses e que se pode explicitar de modo muito simples: nas presentes circunstâncias históricas Ana Gomes prestaria um relevante serviço ao país se se dispusesse a entrar na corrida presidencial. Procurarei de seguida fundamentar esta mesma alegação.

Dentro de um ano os portugueses serão chamados de novo a votar numas eleições presidenciais. O actual Presidente da República, salvo inesperado motivo de força maior, recandidatar-se-á naturalmente ao exercício do cargo. Marcelo Rebelo de Sousa não foi um mau Presidente da República. Dotado de superiores qualidades intelectuais, de uma invulgar cultura política e de uma assinalável capacidade de empatia com as massas populares, revelou-se, como seria, aliás, de esperar, um homem à altura das suas imensas responsabilidades institucionais.

Não tem sido, porém, como de resto ninguém o seria, um Presidente perfeito. Na sua vertiginosa vontade de ser amado por todos exagerou na apologia dos afectos contribuindo, desse modo, para uma relativa despolitização da função presidencial, o que teve reflexos negativos na vida democrática do país. De uma certa forma, Marcelo Rebelo de Sousa tratou sempre a sociedade portuguesa como um imenso “O Programa da Cristina”. O mundo das selfies, dos intermináveis beijos e abraços, remete para uma espécie de irrealidade anestesiante da verdadeira e necessária discussão política.

Não terá sido por acaso que o Presidente da República, tão empenhado na busca de um quase unanimismo emocional, se tenha revelado incapaz de promover qualquer entendimento de carácter sistémico entre os dois maiores partidos portugueses. Os consensos políticos ao nível das verdadeiras questões do regime exigem mais razão do que emoção, apelam mais à dimensão argumentativa da política e menos às suas manifestações folclóricas. É pena que um homem com a estatura intelectual de Marcelo Rebelo de Sousa coloque demasiadas vezes a inteligência ao serviço de uma obstinação pelo reconhecimento público, com prejuízo para a sua actuação institucional.

Tudo isto não significa, porém, que o balanço da actuação presidencial seja negativo. É, a meu ver, apesar das insuficiências referidas, um balanço positivo. Por isso mesmo, Marcelo Rebelo de Sousa pode, deve e vai recandidatar-se.

Admitida esta evidência coloca-se uma nova questão: deve ou não surgir uma candidatura presidencial oriunda do espaço da esquerda democrática. Creio que só em circunstâncias absolutamente excepcionais se pode justificar a inexistência de um candidato oriundo deste espaço político. O que é normal, se não mesmo exigível, é que surja alguém capaz de representar na disputa presidencial os princípios, os valores e os pontos de vista próprios desta importante corrente de opinião política.

Só assim se valoriza a instituição Presidência da República, se concorre para a valorização da discussão política, se combate o risco de afirmação de populismos extremistas. A esquerda democrática não pode deixar de comparecer na eleição presidencial. Tem essa obrigação perante o país.

Aqui chegados depara-se-nos uma outra questão: quem estará hoje em melhores condições para representar este espaço político-doutrinário nestas eleições. Admito que haja várias personalidades em condições de aspirar a tal estatuto. Não vejo, contudo, melhor candidatura do que aquela que poderá vir a ser protagonizada por Ana Gomes. Procurarei resumidamente explicar porquê.

A partir de uma certa altura uma personalidade política densa e séria passa a valer tanto por aquilo que simboliza como por aquilo que é. E vale tanto mais quando há uma coincidência entre o que simboliza e o que é. Ana Gomes é hoje para o país inteiro o símbolo da luta por um Estado de direito democrático impermeável a qualquer tipo de corrupção e por um modelo de intervenção política contrário a qualquer promiscuidade entre interesses públicos e interesses privados. Alcandorou-se a esta posição por mérito próprio.

Nos últimos cinco anos acompanhei de perto a sua actuação no Parlamento Europeu e pude constatar o elevado grau da sua coragem moral e física. Nunca se coibiu de visitar países onde era ameaçada de morte, foi a voz mais activa no combate aos paraísos fiscais e jamais cedeu a qualquer tipo de calculismo quando se tratava de defender os Direitos Humanos. Dizem que por vezes é excessiva, pouco diplomática, com alguma propensão para o maniqueísmo. É possível que algumas vezes assim tenha sucedido, mas o que é que isso representa perante tudo o resto, e é quase tudo, que identifica a sua desassombrada intervenção política.

Escrevo por isso aqui o que já transmiti pessoalmente a Ana Gomes: num momento em que o país precisa de um sobressalto cívico-moral a sua candidatura constitui um verdadeiro imperativo categórico. Um imperativo dessa natureza coloca-se antes e para além de qualquer decisão de natureza partidária. Uma coisa é certa – o país terá muito a ganhar se daqui a um ano pudermos optar entre duas personalidades de elevada envergadura, Marcelo Rebelo de Sousa e Ana Gomes.

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