José Redondo tem o licor de Portugal no ADN

Foi torneiro aos 14 anos, fundou um jornal e um clube de rugby, fabricou brinquedos, material de campismo e sinais de trânsito, colou cartazes e autocolantes com slogans ao Licor Beirão. A receita do licor de Portugal vive na cabeça dele.

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José Redondo junto a uma ilustração do pai, José Carranca Redondo Adriano Miranda

Tudo começa no armazém fechado à chave onde repousam sacos de sementes, especiarias e plantas aromáticas. Alfazema, eucalipto e menta, funcho, canela e cardamomo, Índia, Bulgária, Roménia, Marrocos, Turquia, Brasil, Sri Lanka... “Chamamos-lhe fórmula”, diz José Redondo – Licor Beirão no ADN –, que pesa a receita de 13 ingredientes mais ou menos uma vez por semana antes de esta ser moída, macerada em álcool e destilada em alambique de cobre. “Só está em mim e no meu filho Ricardo. Haverá um plano b se nos acontecer alguma coisa”, conta o faz-tudo (relações públicas, sócio-gerente, administrador e “mestre destilador: há 50 anos que vou todos os dias aos alambiques e ao laboratório") de uma multinacional familiar (quatro milhões de garrafas produzidas anualmente com exportação directa para mais de 40 países) que todos os dias, pelas 13h, “religiosamente” se junta à volta da mesa do almoço ("filhos, noras, netos... nunca se sabe se somos dez ou 14") numa casa dos anos 1950 na Quinta do Meiral, Lousã. “São as melhores reuniões que eu tenho.”

José Redondo vive “a um minuto da fábrica” do Licor Beirão, licor natural com fins digestivos inventado no final do século XIX que começou a ser produzido e comercializado numa farmácia da Lousã – e que na década de 1960 representava menos de 10% do volume de todos os negócios da família. “Sou um felizardo”, diz, orgulhoso, inadvertidamente começando quase todas as conversas com uma referência ao seu pai, José Carranca Redondo, falecido em 2005 com 89 anos, “um homem com a quarta classe” que “só pensava em negócios”, um “génio da publicidade” quando não existia publicidade, um “vulcão de ideias” com “um executivo do caraças”. “Ele tinha ideias e passava tudo para mim. Éramos uma dupla. Éramos como irmãos”, conta, depois de percorrer com a Fugas a linha de enchimento e de embalamento do Licor Beirão onde, à mão, umas 12 pessoas atam a fita à volta do gargalo da garrafa torneada imediatamente antes de colocados o holograma, o selo brasão, a gargantilha e mais três rótulos. “Faz parte. Não temos coragem de a tirar. Mantemos a fita da mesma forma que mantemos produtos naturais no licor em vez de essências. Era como se a Chanel deixasse de usar pétalas de rosas. Nós resistimos a isso.”

Os sacos de sementes, especiarias e plantas aromáticas Adriano Miranda
Os alambiques de cobre Adriano Miranda
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Os sacos de sementes, especiarias e plantas aromáticas Adriano Miranda

Nascido em 1916, José Carranca Redondo trabalhou dois anos na “fabriqueta” de licores (onde se produziam 70 produtos: amêndoa amarga, amor perfeito, anacoreta, ananás extra, anis, anisete, cana, cherry branco, conventino, curaçau, brandy, ginjinha, Monte Carlo...) depois de ter passado meia dúzia de anos na Remigton, empresa de máquinas de escrever requisitada pelo governo norte-americano para produzir armamento. Ficou desempregado. “Pede a minha mãe em casamento e diz-lhe ‘se aceitares, compro a fábrica'”, recorda José Redondo. Em 1940 compra a fábrica – e casa-se.

Hoje, o filho admite que o Licor Beirão poderia não existir sem a dedicação de Maria José Redondo, que “tratava de tudo” enquanto o marido criava. “Intuição”, repete José Redondo, o executivo de serviço em todas as mil e uma aventuras. “Eu fazia tudo”, sorri José, “torneiro aos 14 anos”, fundador do jornal Trevim há mais de meio século, fundador e actual presidente do Rugby Club da Lousã e até capitão da equipa da Lousã que participou nuns Jogos Sem Fronteiras. “Pense numa coisa na Lousã. Eu organizei. E tudo o que vocês pensarem ao nível de publicidade, nós fizemos antes.”

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Habituado a prender plateias de alunos universitários, José Redondo debita então de uma forma entusiasmada a longa versão resumida da sua história, que é a história do Licor Beirão e que é a história dos projectos que saíram da cabeça mirabolante do seu pai, que começou a fazer marketing com um escadote e um balde de cola num país conservador de brandos costumes e em tempo de guerra. Todas se fundem. Todas são uma só – a marca J. Carranca Redondo. Entre uma fábrica de brinquedos, outra de material de campismo, a “maior” empresa de afixação de cartazes do país, uma de painéis publicitários de madeira (para ocupar os tempos mortos dos funcionários do Licor Beirão que faziam as caixas para as garrafas), outra de fibra de vidro, uma gráfica e ainda uma empresa de sinalização rodoviária (com publicidade ao licor no verso), José Redondo colecciona uma série de campanhas visionárias como o poster com a tabuleta de madeira com a serra da Lousã no horizonte e a frase “O Licor de Portugal” ("Não imaginam o que fui gozado. Hoje todas as marcas têm orgulho e querem estar associadas à marca Portugal") ou a frase “O Licor de quem todos gostam” ("um professor da Primária tentou corrigir o meu pai, dizendo que era ‘o licor de que’ e não ‘de quem’, mas o meu pai insistiu; o Salazar, que era beirão, teve conhecimento, mas não tivemos problema nenhum").

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“Era a maneira de fazer falar do licor. O que era preciso é que as pessoas comentassem”, conta José Redondo, que desenhou tampas para caixas de madeira, porta-guardanapos, réguas ("que licor, senhor professor”, “que licor divinal, senhor general”, “que licor excelente, senhor presidente”, “que licor feliz, senhor juiz") e quadros de serigrafia, personalizou milhares de t-shirts, pintou centenas de painéis, afixou cartazes e desenhou, imprimiu e colou milhares de autocolantes com a marca Licor Beirão ("Feche a porta com cuidado, obrigado” nos táxis lisboetas, “Não se esqueça de apertar as calças” pelas casas de banho do país).

“Fomos a primeira empresa da província e a segunda do país a fazer publicidade na televisão. Um anúncio de 20 segundos custava 720 escudos, o vencimento de um professor primário”, recorda José Redondo, ao lado de um dos mais famosos posters Licor Beirão com a imagem de uma majorette de top e calções curtos com a frase “É de bom gosto servi-lo, é de bom gosto bebê-lo”. “Lembro-me que o homem que afixava esses cartazes chegou a ser corrido a tiro de caçadeira. A carrinha estava cravada a chumbos.”

José filho tirou Engenharia Mecânica ("por causa de uma fábrica alemã de motores” com base na Lousã). Foi para a universidade – “ia a Coimbra duas vezes por semana, nos dias dos treinos de râguebi da Académica"– “para não ir à tropa”. Acabou por ter que ir – e durante longos meses o pai foi-lhe dando conta do dia-a-dia da fábrica através de aerogramas.

Em 1997, a marca Licor Beirão vende pela primeira vez um milhão de garrafas, número duplicado em 2000 e triplicado em 2010. “O licor começou a crescer e deixámos de ter tempo para tratar dos outros negócios, postos de lado”, sublinha José Redondo, que, assume, trata o Licor Beirão como um dos seus (quatro) filhos.

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José Redondo com a sua primeira equipa de rugby, em 1973
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