“Hoje está bom tempo”, repetiu M.S. nos testes de novo dispositivo cerebral para Parkinson

Chama-se BrainSense e é mais um passo na estimulação cerebral profunda que permite agora a criação de uma “agenda digital” individual de doentes com Parkinson. Serviço do Hospital de S. João no Porto é o terceiro no mundo a fazer a cirurgia para pôr o inovador dispositivo.

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Cirurgia decorreu esta terça-feira no Hospital de S. João, no Porto Paulo Pimenta
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Uma mulher, de 70 anos, com doença de Parkinson recebeu esta terça-feira um novo dispositivo que, além da estimulação cerebral profunda, permite o registo contínuo de ondas cerebrais implicadas nos sintomas da doença. Foi a primeira cirurgia deste tipo em Portugal e a terceira em todo o mundo, segundo anunciou o neurocirurgião Rui Vaz, responsável pela equipa do Hospital de S. João que realizou a delicada cirurgia que envolve a colocação de eléctrodos no cérebro e de um dispositivo debaixo da pele, no tórax. Para o especialista, este avanço é mais do que um simples upgrade do equipamento tradicional e pode “abrir novas portas” para tratar esta e outras doenças, como epilepsia ou doença obsessiva-compulsiva.

“Este dia é difícil. Tem de ter paciência e pensar no futuro”, pedia Rui Vaz à sua doente, que esteve sempre consciente ao longo da delicada cirurgia para a colocação do novo dispositivo. Na verdade, as palavras do neurocirurgião foram as mesmas de sempre, desde que em 2002 começou a fazer este procedimento no Hospital de S. João. Rui Vaz foi o primeiro em Portugal a colocar um dispositivo para estimulação cerebral profunda em doentes de Parkinson (até hoje já conta com 350 doentes operados) e, agora, foi também pioneiro na colocação de uma versão melhorada deste equipamento. Além da estimulação, o BrainSense regista os sinais cerebrais (neste caso específico foi programado para registar as ondas beta) do doente com Parkinson. A cirurgia é em praticamente tudo igual à tradicional mas, desta vez, o equipamento vai registar continuamente a actividade cerebral do doente e enviar todos os dados para um simples tablet que vai funcionar como “agenda digital” do seu dia-a-dia.

Tradicionalmente, um doente com Parkinson que seja submetido a uma cirurgia para estimulação cerebral profunda (para isso terá de cumprir uma série de critérios, sendo que o principal será não responder mais ao tratamento com medicação) tem de registar à mão, quando pode e se lembra, o que vai sentindo no dia-a-dia. Com esses dados mais ou menos fiáveis e outro tipo de exames, o médico vai adaptando a terapêutica. “O doente vai registando quando está melhor ou pior numa agenda manual, mas é uma informação parcial e muito falível”, reconhece Rui Vaz quando, ainda no seu gabinete, apresenta este novo dispositivo.

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O neurocirugião Rui Vaz lidera a equipa no Hospital de S. João, no Porto Paulo Pimenta

Com o registo dos sinais cerebrais associados aos sintomas da doença de Parkinson, esta nova tecnologia – lançada na Alemanha, onde se realizaram as únicas duas cirurgias com este dispositivo – é, defende o médico, “um primeiro passo no sentido de passarmos de tratar a doença para tratar o doente”. É que o tratamento actual é baseado numa estimulação praticamente constante quando a doença em si oscila ao longo do dia e, por isso, os sintomas variam de doente para doente.

M.S. surgiu como a candidata ideal para a estreia desta nova versão. É, conta Rui Vaz, uma doente com Parkinson, um distúrbio neurodegenerativo do movimento que afecta cerca de 20 mil portugueses, com sintomas de rigidez ou, recorrendo ao termo médico, com a forma acinético-rígida desta doença, sem tremores. O diagnóstico de M.S. terá cerca de cinco anos e a doente já não estava a responder à medicação, colocando-a como elegível para a cirurgia. Com esta nova versão “no mercado”, Rui Vaz quis colocar (ou manter) Portugal no pelotão da frente da inovação desta área.

Três doentes com novo modelo

O novo equipamento, explica, tem uma duração idêntica ao que tem sido usado até agora (cerca de cinco anos de bateria), assegura igualmente uma estimulação contínua, é ligeiramente mais pequeno e “é 25% mais caro”, sendo que a colocação do “modelo” tradicional que foi (e continuará ainda a ser) usado no serviço custa cerca de 25 mil euros. M.S. deverá ficar internada até sexta-feira e vai para casa. Os dados serão registados e dentro de um mês será feita a primeira avaliação.

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O novo dispositivo BrainSense Paulo Pimenta

Numa primeira fase, a administração do hospital aprovou a colocação do novo modelo em três doentes, sendo que a anterior versão vai continuar a ser utilizada. Esta primeira operação com o BrainSense – bem como as próximas duas intervenções previstas – são apenas dirigidas a doentes com Parkinson e só nas formas acinético-rígidas (excluindo, para já, as formas tremóricas). Porém, Rui Vaz confirma que o dispositivo tem outras indicações, cientificamente comprovadas, como o tratamento da distonia, tremor, epilepsia e doença obsessiva-compulsiva. O que muda é o alvo (o tipo de ondas cerebrais que se captam e registam) e a programação do dispositivo.

Um esperado passo em frente deste equipamento que, para já ainda não é possível garantir, é atingirmos o que os médicos chamam de “closed loop”, um circuito completo e fechado com um equipamento que detecte as ondas e que, além de registar os dados, seja capaz de responder com a estimulação mais adequada a cada do doente. Algo que seria particularmente útil nos casos de epilepsia para responder aos sinais de uma crise e, assim, travá-la.

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Metendo o carro muito à frente dos bois, Rui Vaz admite que este tipo de dispositivo possa, no futuro, responder a outras doenças além das cinco actualmente previstas. Quais? Doenças psiquiátricas como a depressão grave ou a anorexia nervosa, espera o clínico. “Mas, para já, este novo dispositivo aqui é só para Parkinson”, avisa, travando o entusiasmo.

No oitavo andar do Hospital de S. João, no bloco operatório do serviço de neurocirurgia, esta terça-feira foi um dia igual a tantos outros. A invulgar agitação só era perceptível pela presença de intrusos ao serviço que acompanharam (mais) esta inovação médica. No bloco, M.S. nem se terá apercebido da “equipa alargada” que por alguns momentos teve à sua volta e que, obviamente, autorizou. O importante era deixar os cirurgiões encontrarem o melhor alvo no núcleo subtalâmico do seu cérebro e, para isso, ajudar os médicos cumprindo os pedidos para abrir e fechar a mão, contar “um, dois, três, quatro…”, olhar para a direita, esquerda, para cima e para baixo, confirmar se via um ou dois dedos e repetindo a frase que lhe pediram várias vezes para dizer: “Hoje está bom tempo.”

A cirurgia começou por volta das dez da manhã e já passava do meio-dia, com a luz do Sol a entrar por várias janelas da sala, quando uma importante parte do processo se encontrava perto do fim (que só chegou, de facto, já depois das 17h). A estimulação (a um, dois ou três volts) era sintonizada no melhor nível e local do cérebro para quebrar a rigidez imposta nos membros pela doença. Os testes eram feitos no pulso da doente, forçando o seu movimento e medindo a resistência até uma melhoria da rigidez que atingiu os cerca de 80%. O efeito era visível e imediato. Depois de um rápido teste à sua doente, Rui Vaz afastou-se para um canto do bloco operatório e, debaixo da máscara, denunciava o sorriso enquanto comentava baixinho: “Isto é fantástico, não é? O efeito é imediato. Mas o melhor de tudo não é isto. O melhor de tudo é ver a doente na sexta-feira, quando lhe dermos alta e ela for bem para casa.”

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