De olhos bem fechados

Quem conviveu antes com Joacine não se apercebeu das características pessoais que não a recomendavam para o trabalho parlamentar e a representação do partido?

Há pelo menos duas perguntas que, estranhamente, ainda não foram feitas pelos jornalistas (e se por acaso o foram e eu não as vi nem ouvi, peço desculpa) a propósito do conflito entre Joacine Katar Moreira e a assembleia do Livre que, por unanimidade, propôs que lhe fosse retirada a confiança política depois dos sucessivos episódios de desentendimento mútuo: por quem e como foi escolhida Joacine para principal cabeça de lista do partido e como é que se explica a tão bizarra agressividade entre a deputada e os órgãos partidários logo no início dos trabalhos parlamentares?

De facto, teria sido a coisa mais natural do mundo confrontar os responsáveis do Livre com o processo de selecção dos seus candidatos, tentando perceber o que conduziu ao estranhíssimo caso Joacine. Ainda hoje, aparentemente ninguém sabe quem – que pessoa, pessoas, órgãos partidários – e como – em que circunstâncias, reuniões, assembleias – teve a ideia de propor aquela suposta militante do Livre para ser a sua figura emblemática na campanha das legislativas. E ainda hoje ninguém sabe também – com eventual excepção dos silenciosos protagonistas desse drama ou comédia – como é que se desencadeou o enorme equívoco dessa escolha e como é racionalmente explicável tão pouco tempo passado sobre o começo da nova legislatura. Quem conviveu antes com Joacine não se apercebeu das características pessoais que não a recomendavam para o trabalho parlamentar e a representação do partido?

Evidentemente, há algumas explicações óbvias: o amadorismo político do Livre; a natureza horizontal da sua organização (com horror a qualquer tipo de autoridade ou hierarquias tradicionais); as especificidades identitárias e os preconceitos ideológicos que acabaram por favorecer a opção original por uma mulher negra e gaga como rosto do partido (menosprezando o factor gaguez e, pelo contrário, valorizando-o como um elemento complementar e eventualmente enriquecedor do factor racial, desafiando de forma provocatória o conservadorismo dos hábitos e costumes parlamentares).

Mas mesmo com todas estas explicações mais ou menos políticas – que a imprensa não perdeu muito tempo, sequer, a analisar – persiste um mistério de natureza humana: como são possíveis um desentendimento e uma ruptura tão súbitas entre um colectivo de pessoas e a pessoa escolhida para representá-las? Como foi possível tal cegueira mútua que, repentinamente, se transforma num pretexto de hostilidade e repartição de culpas? O Livre decidiu adiar uma tomada de posição sobre o “episódio” – tal como o qualifica a sombra tutelar do partido, Rui Tavares – para depois da eleição da nova assembleia que hoje se realiza, mas é tarde demais para ultrapassar a questão que tem monopolizado a actividade partidária e suscitado uma onda de perplexidade na opinião pública. A ferida aberta não se fechará com um golpe de mágica, como gostaria Sá Fernandes, membro do conselho de jurisdição do partido e um dos raros defensores da “incompreendida” Joacine, que considerou “injusta” a primeira deliberação da assembleia do Livre. Mas se foi “injusta”, como qualificar, por outro lado, o comportamento da deputada?

Para além da especificidade e do carácter restrito deste caso, vivemos hoje uma época em que o mundo político corre o risco de tornar-se cada vez menos transparente e compreensível, habitado por criaturas de olhos bem fechados. Basta lembrar as diversas peripécias do recente conflito entre os Estados Unidos e o Irão ou as novas revelações do impeachment de Trump para se perceber que a cegueira, desorientação e demência de alguns dirigentes políticos e seus acólitos tende a banalizar-se – é o chamado “novo normal” – e, de forma assustadora, a contagiar as opiniões públicas.

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