Os Artistas Unidos do outro lado da Força

Jorge Silva Melo volta a investir num texto de Heiner Müller com os seus Artistas Unidos. Mas um actor em particular polariza A Máquina Hamlet, hipnotizando a plateia: João Pedro Mamede.

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João Pedro Mamede é o íman desta peça, pela intensidade, pela ferocidade que imprime à personagem JORGE GONÇALVES

Nove páginas, não mais. Nove páginas em que não se vislumbra um enredo, antes uma colecção de monólogos. Mas nove páginas de excepção… e provocação. Nove páginas que, passados anos e anos, parecem não envelhecer no seu sombrio caleidoscópio de interrogações, ultrapassando até o ferrete do seu pós-modernismo original, com o tempo ganhando novos significados. Nove páginas que talvez não se tornem um clássico – afinal passaram pouco mais de 40 anos –, todavia nove páginas que continuam a ser uma inspiração e um eco do pensamento racional. E também uma assombração, para quem ainda acredita no papel do intelectual.

“Atrás de mim estão os restos da Europa”, escreveu, aí por 1977, Heiner Müller (1929-1995), na primeira versão de A Máquina Hamlet. Falava de um continente dividido pelo Muro de Berlim, barreira física por detrás da qual o dramaturgo vivia uma rebeldia pouco mais do que surda, ainda assim repleta de fintas nem sempre bem-sucedidas à censura do regime. Basta olhar para o continente, ver do seu estado político e social entre o Mediterrâneo e os Urais, para compreender que Müller ainda não tinha visto quase nada do que aí viria, apesar da sua premonição sobre – por assim dizer – a crise do pensamento ocidental.

Pressentimento, se premonição parecer exagerado, que muita água pela barba deu, dá e continuará provavelmente a dar aos muitos encenadores que se atiram a A Máquina Hamlet procurando um significado distinto, mais conveniente às suas preocupações e aos seus interesses, através daquela chusma de palavras, daquele labirinto construído em sucessões de frases repletas de silêncios, pronunciadas por personagens obscuras, cobertas de sombra e carregadas de dúvidas, dilemas ou sinais de culpa – um peso compreensível quando se constata a derrocada de uma cultura depois de acordar violentamente de um sonho de justiça e de um ideal de sociedade falhados.

Tudo, nesta peça dos Artistas Unidos, se constrói sobre uma acumulação de referências estéticas e políticas, como era próprio de Müller – que da originalidade à autoria partiu muita louça –, aproveitadas por Jorge Silva Melo (com grande benefício do cenário e dos figurinos de Rita Lopes Alves e da iluminação de Pedro Domingos) para entregar aos actores o carrego de traduzir em acção o ambiente de crise inscrito no original como uma espécie de claustrofobia alucinada. Em elenco com Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, Inês Pereira, João Estima, João Madeira e José Vargas, que solidamente interpretam o que lhes cabe, João Pedro Mamede como que opera uma descida ao inferno. Não vai sozinho, não é só ele quem arrasta a plateia e a hipnotiza, mas é ele o responsável pela intensidade, pela ferocidade que imprime à personagem. É ele quem desenha a subtileza com que se move para sublinhar as falas. É ele quem cria e manipula os silêncios, onde se esconde a substância da obra, como quem constrói delicadas filigranas de encantamento e sedução, aos poucos dando corpo à rebelde, embora impotente, provocação de pensar – assim com quem viaja até ao lado negro da Força, contudo encontra energia para voltar e relatar o seu vislumbre do futuro. 

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