Unidade de cuidados continuados para crianças com doenças graves e incuráveis sob suspeita de negligência

Direcção da Associação Nomeiodonada-Kastelo diz que a Entidade Reguladora da Saúde lhe deu 10 dias para resolver as irregularidades detectadas e que “as alterações foram todas desenvolvidas”.

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Paulo Pimenta

Acumularam-se queixas sobre aquela que foi a primeira unidade de cuidados continuados e paliativos para crianças e jovens dos zero aos 18 anos. A Entidade Reguladora da Saúde fez uma auditoria à casa, situada em Matosinhos, e detectou negligência nos cuidados prestados, escassez de pessoal e abuso de poder. A direcção da Associação Nomeiodonada-Kastelo garante que já quase tudo está emendado.

No epicentro está a presidente da associação, Teresa Fraga. Enfermeira especializada em cuidados intensivos pediátricos, cansou-se de ver crianças com doenças graves e incuráveis, algumas em fase terminal, hospitalizadas semanas, meses ou anos a fio. Mobilizou outros profissionais de saúde e em 2016 criou a primeira unidade de cuidados continuados e paliativos pediátricos do país.

Conforme o relatório preliminar, avançado pela SIC segunda-feira à noite, Teresa Fraga dominava as decisões clínicas. Figurava como “gestora de caso” de todas as crianças e jovens. Não fazia reuniões multidisciplinares. “Todos [os profissionais questionados] afirmam que estas reuniões são inexistentes, não havendo discussão dos casos em equipa”, revelou a auditoria.

Recomendação de encerramento

Os inspectores da Entidade Reguladora da Saúde pegaram em três processos de forma aleatória e notaram que a prescrição médica não coincidia com a informação que servia de guia a quem tem de preparar e administrar a medicação. E que a vigilância médica seria insuficiente. Aconteceria não passar por ali um médico o dia inteiro.

No documento datado de 20 de Dezembro de 2019, concluem que “a actuação técnica da Associação Nomeiodonada – Kastelo não é garantística dos direitos e interesses dos utentes sob sua responsabilidade”. E recomendam que se suspenda “a autorização de funcionamento”.

Teresa Fraga não atende o telemóvel. Em comunicado, a direcção da associação afirma que recebeu o relatório no dia 23, dando conta de diversas irregularidades. “A ERS deu 10 dias para a direcção implementar as referidas inconformidades. As alterações foram todas desenvolvidas, incluindo o cabeleireiro para o qual foi necessário, infelizmente, anular um dos quartos originalmente destinado a acolher 2 crianças”, assegura. "Apenas uma inconformidade não está implementada na sua totalidade devido à sua complexidade, mas as obras já foram iniciadas (a criação de uma sala separada para a máquina de vácuo)”, esclarece ainda. “No que respeita à medicação, esta é sempre administrada com prescrição médica.”

Pais confiam na direcção

Alguns pais cruzaram-se com os inspectores que ali estiveram no dia 13 de Dezembro. E revelam surpresa com as conclusões. Em declarações ao PÚBLICO, Joana Ribeiro, representante dos pais, afiança que a sua criança toma a medicação certa e desvaloriza outros aspectos apontados: “Foi tudo acrescentado. Falam em coisas que não lembram ao menino Jesus. O caixote do lixo tem de estar à direita, não pode estar à esquerda. Quiseram que se tirasse duas camas para fazer um salão de cabeleireiro. Não era preciso. Eu sou cabeleireira. Eu faço isso voluntariamente.”

Disse isto esta manhã de terça-feira, por telefone, antes de entrar numa conferência de imprensa pronta para refutar também a queixa apresentada pela Nariz Vermelho ao Ministério Público, segundo a qual as crianças perdem vivacidade pouco depois de ali entrar, “ficando prostradas, sem reacção, em estado de apatia geral”, “passam demasiado tempo na mesma posição”, alguns “apresentam escaras visíveis”. Joana Ribeiro resume tudo isso numa palavra: “Mentira.”

“Sou representante dos pais, mas também sou mãe. Passo muito tempo aqui. Há pais que passam aqui o dia todo”, diz, desconfiada. “Querem tirar a enfermeira Teresa do lugar. Foi ela que entregou a vida dela e agora, que está tudo pronto, querem que saia.”

Houve eleições na passada sexta-feira. Teresa Fraga foi reconduzida por vontade de uma ampla maioria.

Uma história de sucesso

A casa senhorial, situada entre duas agitadas ruas de S. Mamede de Infesta, foi deixada em testamento por outra mulher, Marta Ortigão, às irmãs hospitaleiras do hospital pediátrico Maria Pia para ajudar crianças “doentes ou desamparadas”. Ficou fechada durante décadas. O Centro Hospitalar do Porto concedeu à associação o direito de superfície por 28 anos.

Não bastava. Cada um dos oito sócios iniciais participara com 32 euros. Era preciso angariar 2,3 milhões de euros. E isso levou meia dúzia de anos. Através da campanha Arredonda feita pelo Lidl, juntaram um milhão de euros. O prémio BPI Capacitar valeu-lhes mais 100 mil euros. A Câmara de Matosinhos contribuiu com 300 mil. A Missão Sorriso doou 36 mil euros. Muitas salas e quartos têm mecenas – empresas, mas também pessoas singulares que quiseram patrocinar a causa.

A primeira unidade de cuidados continuados pediátricos foi inaugurada a 24 de Junho de 2016. De fora, tudo parecia correr bem. Em 2017, venceu o Prémio O Norte Somos Nós, na categoria NORTE Inclusão, “pela humanização do serviço prestado e capacidade de assegurar conforto e qualidade de vida aos utentes”. Em 2018, foi finalista dos Prémios RegioStars, atribuídos pela Comissão Europeia destinada a reconhecer projectos inovadores”

Tudo ali fora pensado para afastar a ideia de hospital. Nem os enfermeiros, nem auxiliares deviam vestir batas. Uns e outros podiam usar t-shirts ou camisolas, isto é, vestir-se de forma informal, confortável. Havia desenhos nas paredes e um jardim enorme, uma horta, uma quintinha com ovelhas. Em 2018, acrescentou-se um parque aquático.

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