Uma Europa de Nações ou uma Europa de Estados

A União Europeia é uma associação de Estados-nações, mais antigos ou novos, onde persistem sensibilidades regionais com maior ou menor expressão política que não devem ser desvalorizadas.

Os Estados europeus, tal como os conhecemos desde há pouco mais de um século, estão a ser pressionados quer pelo nível supra-estatal (sobretudo pela União Europeia, para a qual transferiram nas três últimas décadas poderes acrescidos), quer por níveis infra-estatais, regionais ou locais. Isso é visível no ressurgimento de movimentos de opinião e políticos que questionam o projecto de uma União centralista que é suposto exercer a parte de soberania que lhe foi delegada pelos Estados.

Paralelamente, verifica-se a nível interno de alguns países a afirmação de identidades específicas que exigem um aprofundamento das autonomias, ou mesmo a independência, invocando a preexistência de uma nacionalidade própria que não seria devidamente tida em conta pelas autoridades centrais. Há quem veja nestes fenómenos um retrocesso perigoso, descartando-os como nacionalismos fora de época ou egoísmos condenáveis, potencialmente fautores de conflitos graves. Embora estes fenómenos coexistam no tempo com um anti-europeismo e nacionalismos extremos e retrógrados que se vêm desenvolvendo, é necessário compreendê-los em toda a sua complexidade e evitar o erro de os assimilar àquelas tendências primárias intoleráveis.

Tentando clarificar estas diferentes forças mas distanciando-me de juízos moralizantes, importa talvez relembrar quando e como se construíram os chamados Estados-nações, muito mais recentemente do que muitos pensam e num contexto em que, a nível europeu, se começou a redesenhar a noção de nação, apetrechando-a nalguns casos de uma maquinaria administrativa a que se chamou ‘Estado’. Tal implica revisitar a segunda metade do século XIX, período em que a Alemanha se unifica sob a batuta do reino da Prússia, a Itália por absorção pelo reino da Sardenha do resto da península, a Hungria obtém uma autonomia quase plena na sequência do Compromisso de 1867 e a Roménia começa por se constituir pela fusão dos Principados do Danúbio (Moldávia e Valáquia). Nesse mesmo período, na Polónia falha a insurreição de 1863 que visava a independência, na Irlanda afirma-se o movimento dos Fenianos em luta pela independência, nos Balcãs o império otomano, que já perdera a Grécia e a Sérvia, assiste impotente à independência da Bulgária e no império austro-húngaro todas as nacionalidades reclamam uma maior autonomia e algumas a secessão.

Simultaneamente e não por acaso, é nesta época que ganham força as ideias de um liberalismo clássico, se apresentam na cena política de uma forma mais ou menos interventiva as classes trabalhadoras, se alargam as reivindicações de maior democracia, se iniciam processos tecnológicos inovadores e se acelera a acumulação capitalista. Dando de barato que o conceito de nação é praticamente intuitivo, seja por critérios relacionados com a existência de uma cultura popular comum, de uma história partilhada, de uma alegada etnicidade, de uma língua própria ou de uma religião diferente da do vizinho, constata-se que casos houve em que se começou por instituir um Estado a partir do qual se forjou uma nação (Massimo d’Azeglio exclamava, em 1860, na época em que apenas 2,5% dos habitantes da península falavam o italiano: “Fizemos a Itália, agora temos de fazer italianos”), bem como houve casos em que certas nacionalidades lograram criar o seu Estado e outras não.

A constituição destes novos Estados-nações pressupunha que, pela sua dimensão ou características, fossem suficientemente sustentáveis do ponto de vista económico, social, administrativo e militar, pelo que se admitia que certas nacionalidades, porque pequenas, fossem integradas ou assimiladas no novo território, degradando-as para meros regionalismos. E no caso de terem língua própria esta passava a ser considerada um mero dialecto. Nesta azáfama de redesenhar fronteiras, Mazzini propunha em 1857 um mapa europeu com 17 entidades. Mais tarde, no fim da Grande Guerra, o presidente americano W. Wilson apontava para 26 ou 27 (se incluísse a Irlanda).

Se hoje perguntarmos a um cidadão do Reino Unido qual a sua nacionalidade, o mais provável é responder que é inglês, escocês ou galês e nunca encontrei quem me respondesse britânico. Os velhos Estados (Grã-Bretanha, França, Espanha) são na realidade plurinacionais, o que explica que em todos existam tensões autonómicas senão mesmo aspirações separatistas.

Em conclusão, parece-me importante distinguir o movimento para fundar Estados-nações do fenómeno do nacionalismo. Aquele era um programa para criar um artefacto específico com o pretexto de se basear num dado sentimento identitário. Esse movimento foi no geral dirigido pelas elites locais e por uma parte das populações citadinas empenhadas na afirmação de interesses de classe no contexto de um desenvolvimento económico concorrencial. O único país onde verdadeiramente a luta pela independência foi protagonizada pelas massas populares e rurais foi a Irlanda, onde a fome e a opressão da parte dos grandes proprietários ingleses mobilizou uma maioria combativa, financiada pelos compatriotas que haviam emigrado para os Estados Unidos.

Ora, a União Europeia é uma associação de Estados-nações, mais antigos ou novos, onde persistem sensibilidades regionais com maior ou menor expressão política que não devem ser desvalorizadas. Por agora, os casos mais evidentes serão a Catalunha e a Escócia, cujas intenções separatistas de parte significativa dos seus povos vão, curiosamente, de par com a vontade de permanecerem integrados na UE.

Aquando do referendo escocês, a Comissão Europeia exerceu através do seu presidente Durão Barroso uma forte pressão sobre o eleitorado escocês, descartando a hipótese de uma adesão automática em caso de independência. A reunificação alemã não provocou os mesmos pruridos, tendo o território da ex-Alemanha de Leste e a respectiva população integrado a União sem alardes. Relativamente à Catalunha, diria que a posição da UE de que se trata de uma questão interna sobre a qual se deve abster de intervir me parece contraproducente, pelo menos quanto às matérias sobre a elegibilidade para o Parlamento Europeu de eurodeputados catalães que o próprio Tribunal de Justiça da UE declarou gozarem de imunidade parlamentar.

Mas se estes casos são os mais visíveis, outros há que podem despontar a qualquer momento. A instituição do Comité das Regiões revelou-se um fracasso e uma inutilidade: não tem poderes, não tem representatividade, ninguém sabe de que se ocupa ou quem o ocupa. Uma irrelevância. E, contudo, a sacrossanta ideia de que os Estados, tais como foram construídos ao longo dos últimos 150 anos, são os únicos protagonistas da União centralista e daí não se cede é, a meu ver, a demonstração de um autismo político que apenas reforçará as forças centrífugas ao diabolizar todas as expressões de ‘nacionalismo’ como se todas fossem perversas ou reaccionárias. Há as que o são e as que o não são.

É urgente alargar este debate, arejar o projecto e recuperar o consagrado princípio da subsidiariedade para encontrar as soluções adequadas que alberguem todas as vontades. O afunilamento conservador é um mero estado de negação que nos conduzirá ao desastre.

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