As ruas que gritaram “morte à América” apontam o dedo ao regime do Irão

Em menos de uma semana, o regime iraniano viu desfazer-se a união à volta do assassínio do general Soleimani. Mais do que o erro que provocou a queda do avião ucraniano, os iranianos queixam-se de terem sido “enganados” pelas autoridades e exigem demissões.

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A queda do avião ucraniano fez 176 mortos, a maioria iranianos Reuters/Wana News Agency

Os protestos de Novembro do ano passado em mais de 100 cidades no Irão, os mais mortíferos desde a revolução islâmica de 1979, ainda estavam frescos na memória do regime iraniano no dia 3 de Janeiro, quando o carro em que seguia o general Qassem Soleimani foi atingido por mísseis norte-americanos à saída do aeroporto de Bagdad, no Iraque.

De um momento para o outro, os gritos nas ruas de Teerão contra o aumento de 50% no preço da gasolina, e em protesto pela morte de 208 pessoas na repressão das semanas seguintes, foram substituídos por outro clamor.

Qassem Soleimani, o líder das forças de elite dos poderosas Guardas da Revolução, a quem o ayatollah Ali Khamenei chamava “mártir vivo”, fora assassinado pelo inimigo n.º 1 do Irão, o “Grande Satã” americano.

“Um drone surgiu nos céus por cima do Aeroporto Internacional de Bagdad e pulverizou a comitiva que transportava o líder militar mais popular na história da República Islâmica”, escreveu no site do canal Al Jazeera, no dia 8 de Janeiro, o académico Ahmad Sadri, professor de Sociologia e director do gabinete de Estudos Islâmicos na Universidade Lake Forest, nos Estados Unidos.

“A liderança iraniana estava a braços com uma enorme crise de legitimidade quando Trump veio em seu auxílio”, disse Sadri num artigo de opinião intitulado “Como a Administração Trump salvou a República Islâmica”.

"Efervescência colectiva"

Depois da esperança numa melhoria das condições de vida, desfeita quando o Presidente dos Estados Unidos rasgou o acordo sobre o programa nuclear iraniano e tirou ainda mais oxigénio à economia do Irão, em Maio de 2018, “o descontentamento público era palpável” semanas antes do assassínio de Soleimani.

As imagens do funeral, com milhões de pessoas nas ruas a gritarem “Morte à América” com uma renovada convicção, mostraram que o ambiente passou de uma crescente contestação para um estado de “efervescência colectiva”, nas palavras de Ahmad Sadri.

E a ameaça do Presidente norte-americano de destruir 52 alvos no Irão, incluindo cidades e locais “muito importantes para a cultura iraniana”, contribuiu para unir ainda mais a população.

Mas a realidade viria a dar mais uma volta de 180 graus no sábado, quando o Governo iraniano admitiu que tinha abatido, por engano, um avião ucraniano com 176 pessoas a bordo em Teerão, na quarta-feira.

Os protestos contra o regime regressaram às ruas de Teerão e outras cidades, e ouvem-se apelos à demissão dos principais responsáveis do Governo e das Forças Armadas, incluindo o Líder Supremo do Irão. E, desta vez, os apelos não ficaram apenas nas vozes dos opositores do regime.

“Termos responsáveis a enganarem o povo é tão significativo como o próprio desastre”, disse no sábado o director da agência de notícias Tasnim, com ligações aos Guardas da Revolução. “E os responsáveis que enganaram os media também são culpados. Estamos envergonhados.”

Depois da renovada união após o assassínio de Soleimani, o regime iraniano voltava a perder a confiança popular, e talvez da forma mais dramática possível no Irão – o país em que o abate de um avião com 290 pessoas a bordo por um navio norte-americano, em 1988, é uma das bases mais fortes para a ideia dos Estados Unidos como “Grande Satã”.

Implicações no impeachment

Enquanto isso, nos Estados Unidos, a ordem do Presidente Trump para assassinar o general Soleimani sem envolver o Congresso norte-americano deixava o debate político no país ainda mais extremado, a meio de um processo de impeachment.

Na quarta-feira, o congressista do Partido Republicano Doug Collins, da Georgia, foi ao programa do comentador Lou Dobbs, um conhecido defensor do Presidente norte-americano, dizer que o Partido Democrata já não estava apenas apostado em “perseguir” Trump.

“Eles estão apaixonados por terroristas. Choram mais pela morte de Soleimani do que pelas nossas famílias Gold Star, que sofreram com os actos de Soleimani”, disse o congressista, reagindo às críticas de várias figuras do Partido Democrata – e algumas do Partido Republicano – de que a Casa Branca devia ter consultado o Congresso antes de lançar um ataque que podia arrastar o país para uma nova guerra.

Na sexta-feira, Collins pediu desculpas pelas suas palavras, no Twitter: “Não acredito que os democratas estejam apaixonados por terroristas, e peço desculpa pelo que disse esta semana.”

Mas a ideia de que as críticas do Partido Democrata são um sinal de tolerância com o terrorismo já tinha passado para a opinião pública nas declarações de outros responsáveis do Partido Republicano, incluindo o próprio Presidente dos Estados Unidos: “A esquerda radical passou os últimos três dias a defender a vida de Qassem Soleimani, um dos piores terroristas da história e pai das bombas improvisadas”, disse Trump no sábado, no Twitter.

Uma ideia de divisão num tema tão sensível como o terrorismo pode dificultar ainda mais a tarefa do Partido Democrata nas próximas semanas – quando vai precisar de manter o interesse do grande público no julgamento do Presidente Trump no Senado, cujo desfecho parece estar decidido à partida com os votos do Partido Republicano.

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